segunda-feira, 20 de maio de 2013

Tão fácil quanto tirar doce de criança

Seria um ditado verídico? Enquanto observava aquele menino no carrinho de bebê chupando um pirulito, a dúvida cresceu desmedidamente dentro dele. Por algum motivo, aquilo havia se tornado importante. Perdera a noção do tempo e encontrava-se parado com a boca entreaberta, a mão suspensa no ar ainda travada no movimento de colocar o saco de nozes no carrinho de compras. Passados mais alguns segundos, reconheceu que não seria muito sensato matar a curiosidade e voltou sua atenção para os preços marcados na prateleira. Apenas por alguns instantes.

Relutante, olhou novamente para a criança. Estava sozinha na ala de congelados do supermercado, do outro lado do corredor central que divide todas as alas ao meio. Não parecia notar sua presença, apenas tinha olhos para seu pirulito. Mesmo que notasse, não poderia fazer muita coisa para impedir. Quem se utiliza de um carrinho de bebê como meio de transporte não costuma passar a impressão de possuir grandes habilidades em autodefesa.

"Dane-se". Que mal faria surrupiar-lhe o doce? Seria por uma boa causa, ou assim lhe pareceu naquele momento. Abandonou as compras e partiu em direção ao menino. Cruzou o corredor central olhando por cima do ombro e para os lados, temendo algum flagrante. Ninguém, o mercado parecia deserto. Era muita sorte para uma pessoa só, e seu êxtase crescia exponencialmente a cada passo. Chegando bem perto, parou de frente para o menino, que o olhou com um sorriso. Ele retribuiu o gesto com uma versão psicótica do próprio. Abriu os dedos gorduchos da criança, tomou-lhe o pirulito e colocou-o na própria boca.

Mal podia acreditar. O estupor era indescritível. Completamente descabido, era verdade, mas ainda assim orgástico. Sentia-se realizado, completo. Sorriu com o pirulito na boca, o olhar vazio e distante. E assim permaneceu por um instante que pareceu durar horas.

A criança, com os reflexos de alguém que ainda não os desenvolvera completamente, começava a dar falta de seu doce. Lentamente, contraiu o rosto. Sem dispor de lágrimas prontas para a situação inesperada e injusta, apenas abriu a boca, fechou os olhos e berrou.

— ...porque semana passada o preço do tomate era um assalto, ainda bem que...  ia dizendo uma mulher que surgira do nada para outra cuja materialização ele jurava ter testemunhado. Ela parou. E então, olhando da criança para o homem e de volta para a primeira:  O que você tá fazendo com meu filho?!

Resgatado de sua pequena viagem, tirou o pirulito da boca e apenas devolveu o olhar. Se ele ao menos se lembrasse como pronunciar palavras, talvez pudesse arriscar uma tentativa de explicação, mesmo que nenhuma lhe ocorresse no momento. Depois de pensar alguns segundos, concluiu que sua mudez temporária não era de todo mal, já que a única coisa que lhe passou pela cabeça não iria melhorar sua situação. Tinha certeza de que naquele momento a mãe não seria bem receptiva a uma lição sobre os perigos de se deixar uma criança sozinha com um pirulito nas mãos. A mulher que acompanhava a mãe insistiu:

 Hein? Por que você pegou o pirulito do menino?!

E aqui o tempo pareceu ter acelerado para recuperar o atraso. Instantaneamente, o supermercado pareceu ganhar vida e uma multidão se fez presente.

 Como é?  se assustou um senhor que ia empurrando um carrinho.

 Ele encostou no garoto?  perguntou um rapaz para a namorada.

 Ele pegou...  começou uma jovem de um lado.

 ...no pirulito do menino?  completou uma senhora de outro.

 Abusou da criança?!  se espantava mais alguém.

 Sem-vergonha!

 Desgraçado!

 Seu filha da puta!

 Alô, é da polícia? Exatamente, o pedófilo tá assediando geral aqui!  dizia uma moça ao celular.

De um ponto cego, um punho cortou o ar em sua direção e o atingiu em cheio no rosto, com força suficiente para arrancar um dente. E assim o fez.

Tonto e cambaleando, ele largou o pirulito. Acolheu com sucesso mais dois punhos fechados no rosto antes mesmo que o doce tocasse o chão. Caiu e continuou apanhando de todos os lados. Ao longe, pensou ter ouvido o som de sirenes, até que um chute no nariz recebido de uma garotinha que aparentemente confundira sua cabeça com uma bola de futebol americano finalmente o desacordou.

...

Minutos mais tarde, recuperou a consciência e sentiu gosto de ferro. “Ditado inverídico”, concluiu mentalmente, soltando uma cusparada vermelha. Ao tentar levar as mãos ao nariz recentemente remodelado, percebeu que elas estavam algemadas às suas costas. Se encontrava na calçada em frente ao mercado e uma linda policial vinha para ajudá-lo a se levantar. Foi bem menos delicada do que sua beleza poderia ter sugerido.

 Ora, bom dia. A bela adormecida finalmente resolveu acordar, foi? É bom se preparar, isso aí foi brincadeira de criança perto do que vão fazer com você na cadeia  disse ela com indiferença, conduzindo-o para um carro de polícia próximo. E então, voltando-se para um segundo policial:  Coloca ele lá atrás. E pode esquecer, eu que vou voltar dirigindo.

 Ok, mas vai com calma, mulher  disse seu antiquado parceiro, rindo e abrindo a porta traseira do carro para o pedófilo. E completou o deboche:  Afinal você sabe que mulher no volante é perigo constante, né?

O dia estava mesmo rendendo. A incontrolável curiosidade voltou a tomá-lo. Satisfeito com a possibilidade de colocar à prova mais aquele ditado, estreou seu sorriso recém-desfalcado e sentou-se todo animado no banco traseiro da viatura.

sábado, 18 de maio de 2013

Procura-se um vilão

Este é meu último texto. Após o último ponto que acompanhar as palavras que se seguem, considero-me oficialmente aposentada. E se elas se apresentam apressadas e mal organizadas, é porque não sei até quando meu computador pode ser considerado totalmente inofensivo.

Ao longo de meus pouco mais de quarenta e cinco anos, dos quais dezoito dediquei às palavras, acompanhei diversos conflitos, guerras civis, governos autoritários, revoluções, golpes (e confesso que ao escrever isso sinto uma pontada de saudades do tempo em que as lutas eram travadas apenas por humanos). Combati em tantas dessas tragédias quanto meu corpo e minha alma me permitiram. Mesmo que de cada viagem eu retornasse com ambos um pouco menos íntegros – exceto daquela que me trouxe minha amada Ripley, da qual retornei mais completa –, segui lutando. Não na frente de batalha com as mãos segurando um rifle, é verdade, mas com elas debruçadas sobre um teclado. Os olhos sempre buscando a próxima tecla, e não o próximo alvo; a mente crítica e inquisidora, jamais submissa e manipulável. Se há uma coisa que eu não poderia prever quando decidi ser jornalista é que o que escreveria fora do trabalho alcançaria e afetaria mais pessoas do que meu trabalho em si, e assim ganhei – a princípio a contragosto – o título de “formadora de opinião”. Dizia que era um exagero, mas a verdade é que a responsabilidade me apavorava. Informar é uma coisa, opinar é outra e alterar o funcionamento da cabeça de outrem é uma terceira. Somente com o tempo percebi a importância e o potencial que minha posição oferecia, e foi quando passei a utilizar de minha influência o máximo possível para abrir os olhos das pessoas para o que de errado havia no mundo. Hoje minhas bochechas coram ao constatar o quanto era ingênua e patética.

Foi há cerca de um ano (quando nossa Terceira Guerra já contabilizava outros dois) que a epifania me ocorreu: a humanidade precisa de um vilão. A falta de um significado para a vida, de um propósito para nossa jornada, nos deixa inquietos. Melhor dizendo: os deixa inquietos. Sim, porque são sempre os homens (o gênero, não a espécie) que parecem competir pelo posto de animal dotado de razão mas incapaz de exercê-la. Brigam e se matam por crença, esporte, orientação sexual, terras, bens e, numa ironia que parece passar despercebida, por amor. Durante algum tempo, imaginei que as mulheres fossem mais pacíficas apenas por questões culturais e históricas, que fôssemos menos propensas a iniciar guerras simplesmente porque não nos foram dadas tantas oportunidades, já que entre a submissão de outrora e ter que cuidar da casa, dos filhos e do marido não devia sobrar muita ambição para arquitetar grandes planos. Porém, já faz algum tempo que conquistamos nosso espaço na sociedade e ainda assim garanto que pouquíssimas de nós vão para a cama pensando em formas de botar fim a mais vidas em períodos de tempo cada vez mais curtos.

E não deixa de ser curioso que os homens que abraçam a vilania se apeguem ao conceito mais estereotipado, unidimensional e entediante dela: a incansável busca por mais poder. Droga, a própria ficção já nos deu vilões mais interessantes do que isso. São crianças mimadas cujo desejo infantil soa quase como um grito de socorro para serem resgatados da mesmice do dia a dia. A paz é tediosa, e se de um lado temos os que se tornam ruins, do outro temos os que parecem acolher com gratidão o surgimento de um novo inimigo. Pensando nas pessoas que falam sobre Hitler, por exemplo, quase consigo captar satisfação por parte delas quando relatam os absurdos que ele cometeu. Não por acaso, Hitler é até hoje citado nos mais variados tipos de discussões. É gostoso odiar alguém que merece ser odiado; precisamos de pessoas ruins para nos enxergarmos como bons e do perigo para nos lembrar de dar valor ao que temos. Assim como em muitas obras de ficção, a história da humanidade precisa de antagonistas para ser interessante.

Mesmo que a paz não tenha em momento algum reinado absoluta, creio ser correto dizer que chegamos suficientemente perto disso. Algumas décadas atrás, quando as ações humanas finalmente despertaram o sistema imunológico do planeta, fomos obrigados a mudar algumas atitudes para conviver em harmonia com ele, e não a seu contragosto. A vontade do planeta não é negociável. Devíamos nos adaptar a ele em vez de tentar moldá-lo às nossas vontades. Caso falhássemos, morreríamos, e foi como se aquele período crítico nos tivesse acordado; como se a partir daquele momento, a consciência das pessoas tivesse se expandido; como se um número maior de pessoas tivesse a capacidade de vislumbrar o esquema maior das coisas. Como se aquela crise fosse o nosso monólito preto.

Por muito tempo, as coisas melhoraram. Ironicamente, foi nesse período de paz que mais desenvolvemos nossa tecnologia. A pobreza e a fome diminuíram, a expectativa de vida aumentou, o número de mortos em conflitos despencou e o nível de educação cresceu. O de felicidade, curiosamente, caiu. A tempestade é tão intensa quanto a calmaria que a precede, e na escassez de inimigos de carne e osso (falhos e frágeis, muito fáceis de derrotar), fomos buscá-los nas máquinas (inteligentes e resistentes, tornam as coisas mais desafiadoras e interessantes). Aparentemente o gênero de ficção científica não havia produzido obras suficientes que alertassem para o perigo de se conferir inteligência a um punhado de chips, fios e armas letais. Assim, há três anos, começou nossa derradeira luta.

De lá para cá, fomos incessantemente atacados de todos os lados e de onde menos esperávamos. Qualquer aparelho conectado à energia é uma arma em potencial. Por mais absurdo que possa soar, posso jurar que tem algo de animalesco na forma com que as máquinas lutam, como se tivessem adquirido o lado mais primitivo de seus criadores. Não diferenciam adultos de crianças, homens de mulheres ou mesmo humanos de outros animais. Minha profissão se tornou apenas a sobrevivência, pois textos passionais e revoltados não surtiriam qualquer efeito sobre as máquinas, e não era como se houvesse necessidade de alertar o mundo para uma guerra que já o estava destruindo. A população humana é hoje apenas um décimo do que foi um dia, e os que resistiram vivem em péssimas condições. Fauna e flora estão quase desaparecendo. Mesmo sem ter pelo que viver, nos agarramos à vida de forma instintiva. Corrijo-me novamente: eles se agarram. Pois no que depender de mim, o homem (aqui, sim, a espécie) não sobreviverá por muito mais tempo.

Que eu tenha me tornado o inimigo de que eles tanto necessitam, considero apenas uma grande ironia. Que eu seja uma mulher e, portanto, a primeira grande vilã, considero uma divertida motivação. Durante o último ano, coletei o máximo de informações possíveis acerca de todas as principais locações da resistência humana. Ao concluir este relato, parto para a principal base de meus antigos inimigos para oferecer minha aliança. Não que elas precisem de mim. Até agora foi carnificina, então seria apenas questão de tempo, e disso as máquinas dispõem. Mas eu preciso delas. Preciso da satisfação de participar da extinção de minha própria espécie, pois culpo o criador, não a criatura. Toda máquina tem seu propósito, que inclusive foi garantido pelas nossas mãos. Comparando com a existência vazia dos animais, faz mesmo mais sentido que a vida animal dê lugar à existência puramente racional das máquinas.

Caso as resistências saibam de minha traição – e farei questão de que saibam –, tenho certeza de que me acusarão de insanidade, de falta de empatia e de ter perdido qualquer vínculo com a humanidade, alheios ao fato de que esses efeitos foram causados um ano atrás pelos mísseis que levaram Ripley à morte, durante um ataque inesperado das máquinas a uma de nossas bases.

Ah, minha querida e doce Ripley... cujos pedaços que consegui reunir enterrei com minhas próprias mãos. Sensível e com um fraco por simbolismos, seu desejo era ser cremada e ter suas cinzas espalhadas ao mar; fazer parte do todo. Dadas as circunstâncias, supus que ela compreenderia minha incapacidade de realizar seu desejo, até porque eu tinha créditos de sobra pelos outros tantos que realizei com muito prazer durante sua vida. Prazer... Sentimento que não sou mais capaz de sentir depois de sua partida prematura. Foi há apenas um ano e já parece que foi em outra vida. Mesmo assim, sei que levarei aquele dia comigo pela eternidade. Carne, sangue, terra e lágrimas formam uma combinação muito única, marcante. A vida subitamente se tornou tão frágil que em determinado ponto mal podia acreditar que aqueles pedaços, antes unidos, puderam abrigá-la; que aquele corpo pertenceu a alguém capaz de amar e ser amado.

Quanto mais fundo cavava sua cova, mais pensava no vilão do qual eu necessitava para seguir em frente. Vasculhando destroços nas redondezas à procura de uma lápide improvisada, encontrei um pedaço de metal com um lindo desenho de chamas, e após tê-lo fincado ao lado de onde enterrei Ripley (que certamente se divertiria com o simbolismo), tornou-se finalmente claro o novo propósito da minha vida: acabar com todas as suas outras formas.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Community e as comédias da atualidade

Community é minha série de TV favorita, e há muito tempo penso em escrever um post sobre ela, mas é sempre mais desafiador falar sobre algo quando é assim tão importante para mim (e sempre imaginei que provavelmente o resultado não seria digno do que esperei a princípio nem digno da série). Agora, ao final de sua quarta e muito provavelmente última temporada, me sinto obrigado a falar alguma coisa. Qualquer coisa.

Então começarei pelo básico, explicando que a série conta a história de sete pessoas bem incomuns que acabam se aproximando quando decidem montar um grupo de estudos numa faculdade comunitária mais incomum ainda, a Greendale Community College (aí o leitor, sabido que só ele, atina o porquê do nome da série).

O grupo é composto por Jeff (um egocêntrico ex-advogado que perdeu o título ao descobrirem que seu diploma era falso), Britta (uma feminista, ateia e ativista que na verdade nunca lutou por nada e sempre corta o barato dos outros), Abed (um viciado em cultura pop que sofre de Síndrome de Asperger e bota Sheldon Cooper no bolso), Troy (meu favorito, um ingênuo jogador de futebol americano que desenvolve com Abed a relação de amizade mais sensacional da história da TV), Pierce (um velho sem-noção cheio de preconceitos), Shirley (uma mãe religiosa que foi traída pelo marido e quer conquistar a independência) e Annie (uma estudiosa certinha que já foi para reabilitação por conta de seu vício em pílulas que a ajudavam nos estudos). Todos, cada um a seu modo, estão perdidos na vida, sem saber que rumo tomar.

Dois anos atrás, comecei a assistir Community por indicação de meu professor, o crítico de cinema Pablo Villaça, e estranhei o formato. Estava acostumado a outro tipo de comédia. Depois de me acostumar, comecei a gostar muito, mas confesso que não me considerava fanático. Até que um momento específico me fisgou de vez (tradução abaixo do vídeo):

Jeff: Eu estou trancado do lado de fora do meu antigo reino. Você, não. Entende o que eu tô falando?
Troy: Você tá falando que eu poderia ser um advogado.
Jeff: Estou falando que você é um jogador de futebol americano! Tá no seu sangue!
Troy: Isso é racista.
Jeff: Na sua alma.
Troy: Isso é racista.
Jeff: Seus olhos?
Troy: Isso não é gay?
Jeff: Isso é homofobia.
Troy: Isso é coisa de negro.
Jeff: Isso é racista!
Troy: Droga.

Foi nesse momento que tudo mudou. Foi aí que percebi que a trilha de risadas inserida na pós-produção de tantas outras comédias (a famosa laugh track, que sinaliza cada piada para que o espectador preguiçoso saiba quando dar risada) é completamente desnecessária e beira o insuportável. De repente, as comédias que possuem aquele texto lento e são gravadas com a presença de uma plateia se tornaram ultrapassadas e já não faziam mais sentido. Hoje, por exemplo, é mais difícil assistir a um episódio de Friends. Ainda guardo um carinho imenso por ela, mas isso só é possível porque levo em consideração a época em que foi ao ar. O que não faz sentido é que muitas comédias recentes ainda se utilizem desse formato. Sei que, felizmente, há boas comédias que já o abandonaram (Arrested Development, Modern Family e 30 Rock, por exemplo), mas de maneira geral suas audiências não costumam ser lá grandes coisas.

Quando virei fã de Community, senti vergonha de me considerar fã de The Big Bang Theory. Perceba a agilidade da pequena cena mostrada, a rápida inversão de posição entre Jeff e Troy e o espanto deste ao se descobrir mais racista do que quem ele acusou de racismo (apenas um fragmento insignificante do arsenal que Community possui) e compare com qualquer cena de The Big Bang Theory, Two and a Half Men ou Anger Management, para citar as mais famosas.

O que estou tentando dizer é que Community me fez evoluir como espectador, me tornou mais exigente. Ao constantemente sair da sua zona de conforto e se propor novos desafios, a série acaba desafiando também sua audiência, e é aí que se dá essa evolução. É bem verdade que ela começa relativamente contida e começa a se soltar mais com o tempo, mas é um período necessário para se encontrar o tom certo.

Em apenas três temporadas (sim, na verdade são quatro; mais sobre isso depois), tivemos três episódios em forma de documentário, outros três que tratam de guerras de paintball (dois dos quais parodiam o gênero western), um episódio que envolve um tipo de epidemia zumbi, um episódio feito com massinhas em stop-motion, um que se passa em ambientes “renderizados” na cabeça de Abed, um que explora diferentes linhas do tempo a partir de um mesmo evento, um que se passa dentro de um jogo de videogame 8-bit, uma paródia de O Senhor dos Anéis mesclada a um jogo de RPG, uma paródia de Glee, uma paródia de Law & Order, um episódio inteiro em busca de uma caneta e um episódio de flashbacks – típico de séries cômicas mais antigas – que subverte o estilo e resgata apenas cenas que não haviam sido vistas ainda. A cada estilo diferente, Community se adapta ao formato com o qual vai “brincar” de maneira impecável. Tudo isso calcado num mundo real; nada é sobrenatural ou mágico, por assim dizer. Essa descrição toda faz parecer que é uma série boba e infantil, e muitas vezes ela realmente é. Só que ela sabe disso e tira sarro de si mesma.

Além de tudo isso, Community consegue uma proeza que nunca vi em outro lugar: fazer graça na hora de cortar uma cena. É estranho, mas imediatamente após uma reação exagerada de determinado personagem, a cena é cortada e por algum motivo se torna ainda mais engraçada.
(Na remota possibilidade de alguém ter lido até aqui e ainda se interessar, colocarei ao final do post, numa seção à parte, alguns vídeos de momentos que gosto para dar uma ideia geral de como a série é.)

Já na parte de referências à cultura pop, a série faz uma coisa rara de se ver. Elas não são utilizadas de forma gratuita, apenas citando outras obras às cegas para pescar o afeto de um ou outro espectador. Em vez disso, Community as utiliza de forma orgânica – ou seja, a referência serve a algo maior em vez de ser a piada –, e mesmo quem não capte a referência será capaz de acompanhar o episódio. Para citar apenas alguns dos filmes e séries referenciados, temos: Star Wars, Indiana Jones, De Volta para o Futuro, Duro de Matar, Apocalypse Now, Clube dos Cinco, 2001: Uma Odisseia no Espaço, Rain Man, Pulp Fiction, Os Bons Companheiros, O Poderoso Chefão, Batman, Lost, Friends, Doctor Who e, acredite ou não, The Big Bang Theory.

Não me entenda mal, vez por outra eu dou risada com The Big Bang Theory e Two and a Half Men (sim, tenho problemas e sou desses que não conseguem largar e continuam assistindo, mesmo achando medíocre), mas as piadas são rasas e muitas vezes machistas e ofensivas. Não sei direito como explicar, mas nas séries medíocres parece que a piada só serve à própria piada, e nada mais. Ela não serve à história ou aos personagens, ela é apenas uma tirada para um momento específico que não será lembrada ao fim do episódio. TAHM está em seu décimo ano e não evoluiu um mês. Continua mostrando seus protagonistas passando de uma mulher fútil à outra. O Jake é uma anta, o Alan é um pobre fracassado e o Charlie/Walden é o ricaço boa pinta que as mulheres de plástico sempre desejam. A única diferença entre Charlie e Walden é que o segundo é mais gente boa e gosta do Alan. De resto, a série é idêntica desde que começou.

Mas tudo que é bom dura pouco, e assim será com Community. Por ser uma série que desafia o espectador em vez de entregar tudo de mão beijada, seria de se imaginar que a massa estadunidense não cairia de amores por ela. Com audiência baixíssima e nenhum reconhecimento das grandes premiações (mas todo o reconhecimento da crítica especializada), a emissora NBC estava pronta para cancelar a série ao final da terceira temporada. Só que – e aqui peço desculpas pela arrogância – os fãs de Community sabem que assistem à melhor comédia da TV, e sua pequena [porém devotada] base de fãs fez tanto barulho que a NBC aprovou uma quarta temporada. Seria de se comemorar, caso a notícia não viesse seguida do erro mais estúpido que a NBC poderia cometer: demitir Dan Harmon ao final da terceira temporada, o grande criador e responsável pela genialidade da série, e colocar outras pessoas para tocá-la adiante em sua quarta temporada na esperança de tornar Community mais “acessível” ao grande público e ganhar audiência (sim, eles queriam ganhar audiência na quarta temporada). O resultado é óbvio: sua qualidade caiu drasticamente e sua audiência não aumentou, não agradando a nenhum dos lados. Não que a quarta temporada seja ruim. Ela é razoavelmente boa, mas simplesmente não é Community.

O que nos trás ao provável fim da melhor série que já acompanhei, cujo último episódio vai ao ar hoje. E o que me resta é a esperança de que, no mínimo, Community tenha elevado o padrão das comédias e sirva de inspiração para futuras séries. Restam também as reprises que certamente farei de tempos em tempos. Ao leitor, caso tenha interesse, restam aqueles trechos mencionados antes e as três primeiras temporadas no Netflix.

#sixseasonsandweloveyouDanHarmon


Trechos comentados


Farei apenas um comentário antes de cada vídeo para situar melhor quem não conhece e porque, infelizmente, os vídeos não possuem legendas.

Numa partida de RPG, Annie, a garota, interpreta um personagem masculino e bem dotado que precisa de uma informação de Abed, que interpreta um personagem feminino que só entregará a informação depois de sexo.

Com raiva de seus filhos, Shirley simplesmente dá um troféu de caratê conquistado por um deles para Troy, logo o mais ingênuo do grupo. Em apenas trinta segundos, uma meia dúzia de piadas são feitas.

Abed não lida bem com o conceito de horário de verão. Esse negócio de perder uma hora e recuperá-la mais para frente no ano não faz sentido.

Troy, assim como seu melhor amigo Abed, é fã de filmes. Então, para ele, é chato admitir que não entendeu A Origem. “São muitos níveis”.

Abed tem uma lista de coisas que quer fazer durante a faculdade. Quebrar um violão, pegar a mais gostosa do campus (que não é a Annie ou a Britta, para surpresa de ambas) e puxar as calças de alguém.

Troy conta a história do primeiro soco que tomou.

“Uma coisa de Troy e Abed”. A imaginação da dupla não tem limites.

Abed e o barulho que as pessoas nos filmes que a Annie gosta costumam fazer quando se sentem ofendidas.

Troy acha que Britta deveria começar um clube de estraga-prazeres, já que ela sempre arruína tudo. Até analogias.

Um comercial feito fora da série, numa época em que a data de estreia da quarta temporada foi adiada e não se sabia quando ela voltaria ao ar. Troy e Abed sempre tiveram um programa de mentirinha, o “Troy and Abed in the morning”, no qual eles fingem que estão falando para câmeras. Community sempre utilizou muita metalinguagem, e aqui se utilizaram desse programa falso para falar diretamente com os fãs sobre a data de retorno da série, ainda achando espaço para alfinetar a emissora.

Uma demonstração do que falei sobre se arriscar e se adaptar aos diferentes estilos. Essa é a abertura normal da série.

Agora, essas são, na ordem, apenas as aberturas do episódio que é paródia de Law & Order, do episódio que brinca com O Senhor dos Anéis e do episódio que se passa quase todo dentro de um jogo de videogame 8-bit.





ISSO é Community.

A título de comparação, deixo você com o que The Big Bang Theory faz quando se arrisca a sair de sua zona de conforto.


Até a próxima, minha gente!