quinta-feira, 24 de abril de 2014

Uma história

Não se vê por aí, este tipo de história. Provavelmente porque não funcionaria. Uma história em que conflitos não surgem, mudanças não acontecem. Eventos não se sucedem. Ideias não têm corpo. Sentimentos não têm vez. Nem voz. Uma história sem protagonista, sem antagonista. Sem personagens. Não se odeia, não se ama. Nem comédia, nem drama.

Uma história que não tem início por não ter de onde sair, que não tem meio por não haver um para a conduzir, que não tem fim por não ter aonde ir. Com nada interage e é indiferente ao que a rodeia. Por nada é permeada e nada ela permeia. Uma narrativa que não cria expectativa, que não tem resolução. O próprio tempo em suspensão.

Um conto que nada conta. Um narrador que nada narra. Por muito tempo, uma história assim não se mantém, e já vão faltando palavras que permitam-lhe ir além.

Nada nesta história existe. E, ainda assim, a existência desta história persiste.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Sozinhos no Universo

Entrou em casa e largou suas coisas numa poltrona, avisando em voz alta que havia chegado. Sem ouvir resposta, foi até a cozinha lavar as mãos. Pela janela em cima da pia, ele a viu no alto da pequena colina próxima, olhando pensativamente para as estrelas. Saiu para a noite clara pela porta dos fundos e atravessou o gramado. Subiu calmamente a colina e parou ao lado dela.
— Ficou sabendo da descoberta de hoje? — perguntou ela tranquilamente, sem tirar os olhos do céu.
— Do planeta? Fiquei, sim. Praticamente do mesmo tamanho do nosso, está na zona habitável de sua estrela e possui água no estado líquido. Excitante, não?
Ela virou para olhá-lo e sentiu um calor no peito ao vê-lo com um sorriso acolhedor no rosto.
— Pena que esteja tão longe. Qual a distância mesmo? — perguntou ele.
— Não lembro exatamente, sei apenas que uma simples troca de mensagens levaria milhares de anos para acontecer. Se houver vida inteligente, claro — adicionou rapidamente, falhando miseravelmente na tentativa de parecer ponderada.
— Tarefa para nossos descendentes, então — disse ele, acariciando a barriga dela.
— Ainda assim, na escala astronômica, a distância é ridiculamente pequena. Já imaginou? Vida na nossa galáxia. — Ela voltou a olhar para o céu e ele pôde ver o brilho em seus olhos. — Não num lugar longínquo do Universo, na nossa galáxia! No nosso “quintal”. Se a vida (mesmo com centenas de bilhões de galáxias, cada uma com centenas de bilhões de estrelas, que por sua vez possuem sabe-se lá quantos planetas em suas órbitas) achar por bem aparecer num planeta vizinho ao nosso, seria seguro supor que o Universo inteiro esteja transbordando de vida! Em todos os cantos e de todas as formas. Uma expansão gigantesca dos nossos horizontes. Imagine as diferentes culturas, as diferentes crenças, as histórias das civilizações, as espécies e anatomias, as línguas, as guerras e sistemas políticos, o desenvolvimento científico e tecnológico, as invenções, os bons e maus momentos, os heróis e os vilões, os artistas e as obras.
— Nem me fale, querida. Ainda tenho uma infinidade de livros para ler que foram escritos por aqui mesmo e você aí querendo aumentar a lista indefinidamente.
— Besta — disse, rindo. Ela baixou os olhos para o chão e subitamente ficou séria, esforçando-se para acreditar em suas próximas palavras: — Tenho certeza de que alguém em algum lugar do Universo está neste momento olhando para as estrelas e pensando exatamente nas mesmas coisas.
Mas ela não tinha. Como poderia quando o Universo respondia apenas com o silêncio? Continuou olhando para baixo e se deixou tomar pela ideia da solidão e do vazio cercando-os. Percebendo seu conflito interno, ele logo tratou de distraí-la.
— Olha que bonito, amor. Whovian e Trekker já estão se pondo — disse ele, apontando para o horizonte.
A noite foi ficando mais escura e uma brisa começou a soprar. Ainda no alto da colina, os dois entrelaçaram suas caudas carinhosamente e observaram em silêncio as duas luas tocarem o horizonte e desaparecerem sob ele.