quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Monstros

Ela não sentia medo deles. Tinha apenas 9 anos, uma idade em que o medo de monstros ainda é mais do que natural, e já os temia tanto quanto a uma joaninha. Já não se identificava mais com as colegas da escola, que a cada semana apareciam com toda a sorte de histórias e nomes novos, supostamente assustadores. Não para ela.
Não que não acreditasse nas amigas, ou mesmo em monstros. Pelo contrário. Tanto acreditava que por várias vezes via formas estranhas demais para serem obras do acaso surgindo nas sombras dançantes das árvores, projetadas na parede de seu quarto durante a noite. Era comum também ouvir movimentos embaixo da cama, como se unhas arranhassem o soalho de madeira do quarto. Sempre que baixava a cabeça para flagrar o monstro lá embaixo, nada via, mas podia jurar que sentia algo farfalhar em seus calcanhares toda vez que colocava os pés no chão para levantar da cama.
A visita mais constante que recebia, porém, era a do par de olhos vermelhos que apareciam na fresta do antigo armário de seu quarto, cuja porta defeituosa não mais fechava por completo. Era um olhar vivo, embora cansado. Levou algum tempo para deixar de considerá-lo ameaçador e perceber que na verdade transmitia certo abatimento; talvez até vergonha. Com efeito, lembravam-na dos olhos tristes e entregues que sua mãe carregava na maior parte do tempo, com a diferença que os dela eventualmente amanheciam roxos em vez de vermelhos.
Sua mãe era uma pessoa quieta. Estava sempre cabisbaixa, fosse quando o marido chegava da noitada com os amigos, fosse enquanto realizava as tarefas caseiras durante o dia. Tarefas essas que eram prontamente criticadas, aos berros, pelo marido, mal este colocava os pés dentro de casa.
Não, não tinha medo dos olhos no armário. Nem de qualquer outro monstro. Por que teria, se nenhum deles jamais havia feito mal algum a ela?
Medo mesmo, daqueles paralisantes, ela sentia sempre que a porta de seu quarto era aberta lentamente no meio da noite, revelando uma silhueta sombria. Seu pequeno coração saltava e batia violenta e audivelmente, o que parecia agradar o invasor, que se detinha algum tempo no batente da porta para saborear o que estava por vir. Inutilmente, ela fingia estar dormindo, traída impiedosamente por sua respiração pesada e falha e pelos tremores que lhe percorriam o pequeno corpo. Nada que jamais tivesse impedido a silhueta de seu pai de entrar no quarto, avançar até a cama da filha e se meter embaixo das cobertas, sussurrando em seu ouvido que era hora de brincar.
A partir desse ponto, só lhe restava virar para o lado oposto e cair no choro, cujo som era sufocado pela manzorra do sujeito, que lhe tapava a boca e dominava toda a parte inferior da cabeça.
Virou-se para fitar o armário. E lá estavam eles de novo, os impotentes olhos vermelhos, observando. E tudo o que a menina conseguia fazer era devolver-lhe o olhar, carregado de lágrimas, frustração e decepção. Como se perguntasse a quem estava lá dentro por que não saía para salvá-la.