domingo, 15 de março de 2020

Trevas


Fechou o chuveiro e abriu a porta do boxe. Foi recebida pelo abraço gelado do ar, que logo deu lugar ao da toalha. Enquanto ela se enxugava, uma sensação estranha. Olhou ao redor e levou algum tempo para perceber seu reflexo no espelho acima da pia. O banheiro sem janelas sempre deixava o espelho embaçado. Não foi o caso desta vez.

Seu reflexo não poderia estar mais nítido, parado ao lado da porta. O estranhamento evoluiu para um incômodo ainda maior ao perceber-se incapaz de sustentar o reflexo do próprio olhar, então deu dois passos para o lado a fim de sair da frente do espelho. Curvou-se para enxugar as pernas e um arrepio percorreu-lhe o corpo. Um movimento às suas costas. A sensação de não estar sozinha.

Num ímpeto, levantou-se e virou para esquadrinhar o banheiro. Nada. Olhou novamente para o espelho, e do ângulo em que estava podia ver apenas o reflexo da porta. Desejando pela primeira vez que não morasse sozinha, deteve seu olhar longamente no reflexo da maçaneta, apreensiva. Nada.

Ora, que besteira! Esperava que a maçaneta se movesse sozinha? Abaixou-se para pegar as roupas sujas no chão e tentou pensar em algo menos perturbador. Mal levantou e seu coração disparou.

Num canto do espelho, na moldura mais próxima a ela, jurava ter visto o vulto de uma cabeça aparecer e desaparecer. Como se algo dentro do espelho se inclinasse para dar uma rápida espiada no banheiro. Tão rápida que mal acontecera e ela já questionava se não estava imaginando coisas. Não era possível. Provavelmente estava sugestionada pelo incômodo momentâneo. A apreensão transforma qualquer estalar de móvel em tiro de escopeta. Desejava sair correndo do banheiro, mas se forçou a comportar-se como um ser racional. Optou por voltar à frente do espelho para provar a si mesma que tudo estava bem e continuou seu ritual pós-banho.

Olhou para baixo para calçar os chinelos que costumava deixar embocados quase embaixo da pia. Quando levantou a cabeça, viu que seu reflexo estava ainda completando o movimento que ela já havia terminado. Como se o reflexo do espelho estivesse atrasado. Dessa vez teve certeza de não ter imaginado. Novamente, sentiu uma presença atrás de si, muito perto da nuca, e virou-se para olhar.

Mais uma vez, nada. Quando voltou-se para o espelho, ele havia abandonado qualquer sutileza. Deparou-se com o reflexo das costas da própria cabeça, que ainda não havia virado, numa extensão perturbadora do atraso anterior. Em choque, ela permaneceu imóvel. Só conseguia fitar o reflexo da própria nuca. Lentamente, a cabeça no espelho começou a se mexer, virando-se para encarar a própria dona, que foi tomada pelo pavor.

No rosto deformado que a encarava da superfície lisa do espelho, os olhos haviam sido tomados por buracos negros e esfumaçados que vertiam pequenos filetes de sangue, num choro que contrastava horripilantemente com a enorme boca sorridente. Os lábios iam de orelha a orelha e exibiam centenas de grandes dentes pretos, muito finos e pontiagudos, que se entrelaçavam perfeitamente e produziam um sorriso macabro que tomava mais da metade do rosto. O sangue que escorria dos olhos avançava até os dentes pretos e se perdia por entre eles, conferindo-lhes um brilho vivo escuro. A pele, de um cinza com manchas esverdeadas, tinha aspecto podre e revelava veias roxas de diferentes espessuras sob sua superfície.

Tentando apreender tudo que via no próprio reflexo, ela soltou um gemido desforme de desespero e sua visão estremeceu. Sentia que seu corpo estava prestes a ceder completamente a qualquer momento. Reuniu todas as forças que tinha para se manter consciente e virou-se para a porta, finalmente livre do transe que a paralisara até aquele momento, desesperada para sair daquele lugar. Enquanto sua mão cruzava o ar em direção à maçaneta à sua esquerda, viu de esguelha que seu reflexo deformado já havia alcançado a própria porta virtual e girava a tranca. No mesmo momento, a tranca da porta real também girou. Ela tentou destrancá-la, mas o trinco nem se mexia. Alucinada e aos prantos, usava todas as suas forças contra a maçaneta. Puxava, empurrava, batia. Em vão.

O pesadelo que se formara no espelho apenas a observava com aquele sorriso bizarro e imóvel, parecendo divertido. A mulher, exausta, abandonou seus esforços e encarou o espelho, trêmula. Ele abriu ainda mais seu sorriso e começou a sacudir de leve os próprios ombros, numa gargalhada contida. Lentamente, ele levantou a mão à altura da própria cabeça, o dedo indicador em riste revelando a pele cinza e a unha amarela carcomida. Mantinha o dedo parado no ar, como quem quisesse apenas exibi-lo para a mulher, que estava totalmente atordoada. Sua gargalhada foi se intensificando, em franco êxtase. Enjoada e tonta, a mulher acompanhou o dedo podre enquanto ele se dirigiu vagarosamente na direção da parede próxima à porta. Ria cada vez mais alto, agora com a boca medonha bem aberta, emitindo um som absurdo, inumano, jamais antes ouvido por qualquer criatura deste mundo.

Ela tapava os ouvidos, tentando proteger-se do som quase insuportável. Quando viu que o dedo parou perto do interruptor de luz, ela foi dominada pelo mais absoluto terror. Ouviu-se o clique do botão e o banheiro mergulhou em trevas conforme as gargalhadas grotescas se fundiam ao urro abismal que explodiu da mulher.

***

Algum tempo depois, a porta do banheiro se abriu. O que quer que tenha saído de dentro já não era mais ela.