Community é
minha série de TV favorita, e há muito tempo penso em escrever um post sobre
ela, mas é sempre mais desafiador falar sobre algo quando é assim tão
importante para mim (e sempre imaginei que provavelmente o resultado não seria
digno do que esperei a princípio nem digno da série). Agora, ao final de sua
quarta e muito provavelmente última temporada, me sinto obrigado a falar alguma
coisa. Qualquer coisa.
Então começarei pelo básico, explicando que a série conta
a história de sete pessoas bem incomuns que acabam se aproximando quando
decidem montar um grupo de estudos numa faculdade comunitária mais incomum
ainda, a Greendale Community College (aí o leitor, sabido que só ele, atina o
porquê do nome da série).
O grupo é composto por Jeff (um egocêntrico ex-advogado
que perdeu o título ao descobrirem que seu diploma era falso), Britta (uma
feminista, ateia e ativista que na verdade nunca lutou por nada e sempre corta
o barato dos outros), Abed (um viciado em cultura pop que sofre de Síndrome de
Asperger e bota Sheldon Cooper no bolso), Troy (meu favorito, um ingênuo
jogador de futebol americano que desenvolve com Abed a relação de amizade mais
sensacional da história da TV), Pierce (um velho sem-noção cheio de
preconceitos), Shirley (uma mãe religiosa que foi traída pelo marido e quer
conquistar a independência) e Annie (uma estudiosa certinha que já foi para
reabilitação por conta de seu vício em pílulas que a ajudavam nos estudos).
Todos, cada um a seu modo, estão perdidos na vida, sem saber que rumo tomar.
Dois anos atrás, comecei a assistir Community por indicação de meu professor, o crítico de cinema Pablo
Villaça, e estranhei o formato. Estava acostumado a outro tipo de comédia. Depois de me acostumar, comecei a gostar muito, mas confesso que não
me considerava fanático. Até que um momento específico me fisgou de vez
(tradução abaixo do vídeo):
Jeff: Eu estou trancado do lado de fora do meu antigo
reino. Você, não. Entende o que eu tô falando?
Troy: Você tá falando que eu poderia ser um advogado.
Jeff: Estou falando que você é um jogador de futebol
americano! Tá no seu sangue!
Troy: Isso é racista.
Jeff: Na sua alma.
Troy: Isso é racista.
Jeff: Seus olhos?
Troy: Isso não é gay?
Jeff: Isso é homofobia.
Troy: Isso é coisa de negro.
Jeff: Isso é racista!
Troy: Droga.
Foi nesse momento que tudo mudou. Foi aí que percebi que a
trilha de risadas inserida na pós-produção de tantas outras comédias (a famosa laugh track, que sinaliza cada piada
para que o espectador preguiçoso saiba quando dar risada) é completamente desnecessária
e beira o insuportável. De repente, as comédias que possuem aquele texto lento e são gravadas com a presença de uma
plateia se tornaram ultrapassadas e já não faziam mais
sentido. Hoje, por exemplo, é mais difícil assistir a um episódio de Friends. Ainda guardo um carinho imenso
por ela, mas isso só é possível porque levo em consideração a época em que foi
ao ar. O que não faz sentido é que muitas comédias recentes ainda se utilizem
desse formato. Sei que, felizmente, há boas comédias que já o abandonaram (Arrested Development, Modern Family e 30 Rock, por exemplo), mas de maneira geral suas audiências não
costumam ser lá grandes coisas.
Quando virei fã de Community,
senti vergonha de me considerar fã de The
Big Bang Theory. Perceba a agilidade da pequena cena mostrada, a rápida
inversão de posição entre Jeff e Troy e o espanto deste ao se descobrir mais
racista do que quem ele acusou de racismo (apenas um fragmento insignificante
do arsenal que Community possui) e
compare com qualquer cena de The Big Bang
Theory, Two and a Half Men ou Anger Management, para citar as mais famosas.
O que estou tentando dizer é que Community me fez evoluir como espectador, me tornou mais exigente.
Ao constantemente sair da sua zona de conforto e se propor novos desafios, a
série acaba desafiando também sua audiência, e é aí que se dá essa evolução. É
bem verdade que ela começa relativamente contida e começa a se soltar mais com
o tempo, mas é um período necessário para se encontrar o tom certo.
Em apenas três temporadas (sim, na verdade são quatro;
mais sobre isso depois), tivemos três episódios em forma de documentário,
outros três que tratam de guerras de paintball
(dois dos quais parodiam o gênero western),
um episódio que envolve um tipo de epidemia zumbi, um episódio feito com
massinhas em stop-motion, um que se
passa em ambientes “renderizados” na cabeça de Abed, um que explora diferentes
linhas do tempo a partir de um mesmo evento, um que se passa dentro de um jogo
de videogame 8-bit, uma paródia de O
Senhor dos Anéis mesclada a um jogo de RPG, uma paródia de Glee, uma paródia de Law & Order, um episódio inteiro em
busca de uma caneta e um episódio de flashbacks
– típico de séries cômicas mais antigas – que subverte o estilo e resgata
apenas cenas que não haviam sido vistas ainda. A cada estilo diferente, Community se adapta ao formato com o
qual vai “brincar” de maneira impecável. Tudo isso calcado num mundo real; nada
é sobrenatural ou mágico, por assim dizer. Essa descrição toda faz parecer que
é uma série boba e infantil, e muitas vezes ela realmente é. Só que ela sabe disso e tira sarro de si mesma.
Além de tudo isso, Community
consegue uma proeza que nunca vi em outro lugar: fazer graça na hora de cortar uma cena. É estranho, mas imediatamente
após uma reação exagerada de determinado personagem, a cena é cortada e por
algum motivo se torna ainda mais engraçada.
(Na remota possibilidade de alguém
ter lido até aqui e ainda se interessar, colocarei ao final do post, numa seção
à parte, alguns vídeos de momentos que gosto para dar uma ideia geral de como a
série é.)
Já na parte de referências à cultura pop, a série faz uma
coisa rara de se ver. Elas não são utilizadas de forma gratuita, apenas citando
outras obras às cegas para pescar o afeto de um ou outro espectador. Em vez
disso, Community as utiliza de forma
orgânica – ou seja, a referência serve a algo maior em vez de ser a piada –, e mesmo quem não capte a
referência será capaz de acompanhar o episódio. Para citar apenas alguns dos
filmes e séries referenciados, temos: Star
Wars, Indiana Jones, De Volta para o Futuro, Duro de Matar, Apocalypse Now, Clube dos
Cinco, 2001: Uma Odisseia no Espaço,
Rain Man, Pulp Fiction, Os Bons
Companheiros, O Poderoso Chefão, Batman, Lost, Friends, Doctor Who e, acredite ou não, The Big Bang Theory.
Não me entenda mal, vez por outra eu dou risada com The Big Bang Theory e Two and a Half Men (sim, tenho problemas e sou desses que não conseguem largar e
continuam assistindo, mesmo achando medíocre), mas as piadas são rasas e muitas
vezes machistas e ofensivas. Não sei direito como explicar, mas nas séries
medíocres parece que a piada só serve à própria piada, e nada mais. Ela não
serve à história ou aos personagens, ela é apenas uma tirada para um momento
específico que não será lembrada ao fim do episódio. TAHM está em seu décimo ano e não evoluiu um mês. Continua
mostrando seus protagonistas passando de uma mulher fútil à outra. O Jake é uma
anta, o Alan é um pobre fracassado e o Charlie/Walden é o ricaço boa pinta que
as mulheres de plástico sempre desejam. A única diferença entre Charlie e
Walden é que o segundo é mais gente boa e gosta do Alan. De resto, a série é
idêntica desde que começou.
Mas tudo que é bom dura pouco, e assim será com Community. Por ser uma série que desafia
o espectador em vez de entregar tudo de mão beijada, seria de se imaginar que a
massa estadunidense não cairia de amores por ela. Com audiência baixíssima e
nenhum reconhecimento das grandes premiações (mas todo o reconhecimento da
crítica especializada), a emissora NBC estava pronta para cancelar a série ao
final da terceira temporada. Só que – e aqui peço desculpas pela arrogância –
os fãs de Community sabem que
assistem à melhor comédia da TV, e sua pequena [porém devotada] base de fãs fez
tanto barulho que a NBC aprovou uma quarta temporada. Seria de se comemorar,
caso a notícia não viesse seguida do erro mais estúpido que a NBC poderia
cometer: demitir Dan Harmon ao final da terceira temporada, o grande criador e
responsável pela genialidade da série, e colocar outras pessoas para tocá-la
adiante em sua quarta temporada na esperança de tornar Community mais “acessível” ao grande público e ganhar audiência
(sim, eles queriam ganhar audiência na quarta
temporada). O resultado é óbvio: sua qualidade caiu drasticamente e sua
audiência não aumentou, não agradando a nenhum dos lados. Não que a quarta
temporada seja ruim. Ela é razoavelmente boa, mas simplesmente não é Community.
O que nos trás ao provável fim da melhor série que já
acompanhei, cujo último episódio vai ao ar hoje. E o que me resta é a esperança
de que, no mínimo, Community tenha
elevado o padrão das comédias e sirva de inspiração para futuras séries. Restam
também as reprises que certamente farei de tempos em tempos. Ao leitor, caso
tenha interesse, restam aqueles trechos mencionados antes e as três primeiras
temporadas no Netflix.
#sixseasonsandweloveyouDanHarmon
Trechos comentados
Farei apenas um comentário antes de cada vídeo para
situar melhor quem não conhece e porque, infelizmente, os vídeos não possuem
legendas.
Numa partida de RPG, Annie, a garota, interpreta um personagem masculino e bem dotado que precisa de uma informação de Abed, que interpreta um personagem feminino que só entregará a informação depois de sexo.
Com raiva de seus filhos, Shirley simplesmente dá um troféu de caratê conquistado por um deles para Troy, logo o mais ingênuo do grupo. Em apenas trinta
segundos, uma meia dúzia de piadas são feitas.
Abed não lida bem com o conceito de horário de verão.
Esse negócio de perder uma hora e recuperá-la mais para frente no ano não faz
sentido.
Troy, assim como seu melhor amigo Abed, é fã de filmes.
Então, para ele, é chato admitir que não entendeu A Origem. “São muitos níveis”.
Abed tem uma lista de coisas que quer fazer durante a
faculdade. Quebrar um violão, pegar a mais gostosa do campus (que não é a Annie
ou a Britta, para surpresa de ambas) e puxar as calças de alguém.
Troy conta a história do primeiro soco que tomou.
“Uma coisa de Troy e
Abed”. A imaginação da dupla não tem limites.
Abed e o barulho que as pessoas nos filmes que a Annie
gosta costumam fazer quando se sentem ofendidas.
Troy acha que Britta deveria começar um clube de
estraga-prazeres, já que ela sempre arruína tudo. Até analogias.
Um comercial feito fora da série, numa época em que a
data de estreia da quarta temporada foi adiada e não se sabia quando ela
voltaria ao ar. Troy e Abed sempre tiveram um programa de mentirinha, o “Troy
and Abed in the morning”, no qual eles fingem que estão falando para câmeras. Community sempre utilizou muita
metalinguagem, e aqui se utilizaram desse programa falso para falar diretamente
com os fãs sobre a data de retorno da série, ainda achando espaço para
alfinetar a emissora.
Uma demonstração do que falei sobre se arriscar e se
adaptar aos diferentes estilos. Essa é a abertura normal da série.
Agora, essas são, na ordem, apenas as aberturas do episódio que é paródia de Law & Order, do episódio que brinca com O
Senhor dos Anéis e do episódio que se passa quase todo dentro de um
jogo de videogame 8-bit.
ISSO é Community.
A título de comparação, deixo você com o que The Big Bang Theory faz quando se arrisca a sair de sua zona de
conforto.
Até a próxima, minha gente!
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