segunda-feira, 20 de maio de 2013

Tão fácil quanto tirar doce de criança

Seria um ditado verídico? Enquanto observava aquele menino no carrinho de bebê chupando um pirulito, a dúvida cresceu desmedidamente dentro dele. Por algum motivo, aquilo havia se tornado importante. Perdera a noção do tempo e encontrava-se parado com a boca entreaberta, a mão suspensa no ar ainda travada no movimento de colocar o saco de nozes no carrinho de compras. Passados mais alguns segundos, reconheceu que não seria muito sensato matar a curiosidade e voltou sua atenção para os preços marcados na prateleira. Apenas por alguns instantes.

Relutante, olhou novamente para a criança. Estava sozinha na ala de congelados do supermercado, do outro lado do corredor central que divide todas as alas ao meio. Não parecia notar sua presença, apenas tinha olhos para seu pirulito. Mesmo que notasse, não poderia fazer muita coisa para impedir. Quem se utiliza de um carrinho de bebê como meio de transporte não costuma passar a impressão de possuir grandes habilidades em autodefesa.

"Dane-se". Que mal faria surrupiar-lhe o doce? Seria por uma boa causa, ou assim lhe pareceu naquele momento. Abandonou as compras e partiu em direção ao menino. Cruzou o corredor central olhando por cima do ombro e para os lados, temendo algum flagrante. Ninguém, o mercado parecia deserto. Era muita sorte para uma pessoa só, e seu êxtase crescia exponencialmente a cada passo. Chegando bem perto, parou de frente para o menino, que o olhou com um sorriso. Ele retribuiu o gesto com uma versão psicótica do próprio. Abriu os dedos gorduchos da criança, tomou-lhe o pirulito e colocou-o na própria boca.

Mal podia acreditar. O estupor era indescritível. Completamente descabido, era verdade, mas ainda assim orgástico. Sentia-se realizado, completo. Sorriu com o pirulito na boca, o olhar vazio e distante. E assim permaneceu por um instante que pareceu durar horas.

A criança, com os reflexos de alguém que ainda não os desenvolvera completamente, começava a dar falta de seu doce. Lentamente, contraiu o rosto. Sem dispor de lágrimas prontas para a situação inesperada e injusta, apenas abriu a boca, fechou os olhos e berrou.

— ...porque semana passada o preço do tomate era um assalto, ainda bem que...  ia dizendo uma mulher que surgira do nada para outra cuja materialização ele jurava ter testemunhado. Ela parou. E então, olhando da criança para o homem e de volta para a primeira:  O que você tá fazendo com meu filho?!

Resgatado de sua pequena viagem, tirou o pirulito da boca e apenas devolveu o olhar. Se ele ao menos se lembrasse como pronunciar palavras, talvez pudesse arriscar uma tentativa de explicação, mesmo que nenhuma lhe ocorresse no momento. Depois de pensar alguns segundos, concluiu que sua mudez temporária não era de todo mal, já que a única coisa que lhe passou pela cabeça não iria melhorar sua situação. Tinha certeza de que naquele momento a mãe não seria bem receptiva a uma lição sobre os perigos de se deixar uma criança sozinha com um pirulito nas mãos. A mulher que acompanhava a mãe insistiu:

 Hein? Por que você pegou o pirulito do menino?!

E aqui o tempo pareceu ter acelerado para recuperar o atraso. Instantaneamente, o supermercado pareceu ganhar vida e uma multidão se fez presente.

 Como é?  se assustou um senhor que ia empurrando um carrinho.

 Ele encostou no garoto?  perguntou um rapaz para a namorada.

 Ele pegou...  começou uma jovem de um lado.

 ...no pirulito do menino?  completou uma senhora de outro.

 Abusou da criança?!  se espantava mais alguém.

 Sem-vergonha!

 Desgraçado!

 Seu filha da puta!

 Alô, é da polícia? Exatamente, o pedófilo tá assediando geral aqui!  dizia uma moça ao celular.

De um ponto cego, um punho cortou o ar em sua direção e o atingiu em cheio no rosto, com força suficiente para arrancar um dente. E assim o fez.

Tonto e cambaleando, ele largou o pirulito. Acolheu com sucesso mais dois punhos fechados no rosto antes mesmo que o doce tocasse o chão. Caiu e continuou apanhando de todos os lados. Ao longe, pensou ter ouvido o som de sirenes, até que um chute no nariz recebido de uma garotinha que aparentemente confundira sua cabeça com uma bola de futebol americano finalmente o desacordou.

...

Minutos mais tarde, recuperou a consciência e sentiu gosto de ferro. “Ditado inverídico”, concluiu mentalmente, soltando uma cusparada vermelha. Ao tentar levar as mãos ao nariz recentemente remodelado, percebeu que elas estavam algemadas às suas costas. Se encontrava na calçada em frente ao mercado e uma linda policial vinha para ajudá-lo a se levantar. Foi bem menos delicada do que sua beleza poderia ter sugerido.

 Ora, bom dia. A bela adormecida finalmente resolveu acordar, foi? É bom se preparar, isso aí foi brincadeira de criança perto do que vão fazer com você na cadeia  disse ela com indiferença, conduzindo-o para um carro de polícia próximo. E então, voltando-se para um segundo policial:  Coloca ele lá atrás. E pode esquecer, eu que vou voltar dirigindo.

 Ok, mas vai com calma, mulher  disse seu antiquado parceiro, rindo e abrindo a porta traseira do carro para o pedófilo. E completou o deboche:  Afinal você sabe que mulher no volante é perigo constante, né?

O dia estava mesmo rendendo. A incontrolável curiosidade voltou a tomá-lo. Satisfeito com a possibilidade de colocar à prova mais aquele ditado, estreou seu sorriso recém-desfalcado e sentou-se todo animado no banco traseiro da viatura.

4 comentários:

  1. Sem demagogia nenhuma: EXCELENTE! Um dos melhores contos que li nos últimos tempos! Parabéns, perfeito!

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  2. Adorei, Dani! Muito engraçado e o final surpreendente. Adoro seu humor! Ta escrevendo mto, hein?! Beijos, Laila. P.s.: primeira vez que escrevo desse trem estranho que o Lucas comprou, sucesso!

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  3. Parabéns, maninho! Muito bom o texto e o desfecho do conto! Continue postando. Abraço.

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  4. Valeu pelo apoio, pessoar! Fico feliz que tenham gostado. =D
    Continuarei praticando, tenho mais um ou outro pra colocar no "papel" ainda.

    Laila, parabéns! Hahaha só não se deixe dominar pelo avançado aparato tecnológico. Já basta termos perdido o jovem Lucas para o lado negro.

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