Relutante, olhou novamente para a criança. Estava sozinha
na ala de congelados do supermercado, do outro lado do corredor central que
divide todas as alas ao meio. Não parecia notar sua presença, apenas tinha
olhos para seu pirulito. Mesmo que notasse, não poderia fazer muita coisa para impedir.
Quem se utiliza de um carrinho de bebê como meio de transporte não costuma passar a impressão
de possuir grandes habilidades em autodefesa.
"Dane-se". Que mal faria surrupiar-lhe o doce? Seria por
uma boa causa, ou assim lhe pareceu naquele momento. Abandonou as compras e partiu
em direção ao menino. Cruzou o corredor central olhando por cima do ombro e
para os lados, temendo algum flagrante. Ninguém, o mercado parecia deserto. Era muita sorte para uma
pessoa só, e seu êxtase crescia exponencialmente a cada passo. Chegando bem
perto, parou de frente para o menino, que o olhou com um sorriso. Ele retribuiu
o gesto com uma versão psicótica do próprio. Abriu os dedos gorduchos da
criança, tomou-lhe o pirulito e colocou-o na própria boca.
Mal podia acreditar. O estupor era indescritível.
Completamente descabido, era verdade, mas ainda assim orgástico. Sentia-se realizado, completo. Sorriu com o pirulito na boca, o olhar vazio e distante. E assim permaneceu por um instante que pareceu durar horas.
A criança, com os reflexos de alguém que ainda não os desenvolvera completamente, começava a dar falta de seu doce. Lentamente, contraiu
o rosto. Sem dispor de lágrimas prontas para a situação inesperada e injusta,
apenas abriu a boca, fechou os olhos e berrou.
Resgatado de sua pequena viagem, tirou o pirulito da boca e apenas devolveu o olhar.
Se ele ao menos se lembrasse como pronunciar palavras, talvez pudesse arriscar
uma tentativa de explicação, mesmo que nenhuma lhe ocorresse no momento. Depois de pensar alguns segundos, concluiu que sua mudez temporária não era de todo mal, já que a única coisa que
lhe passou pela cabeça não iria melhorar sua situação. Tinha certeza de que naquele
momento a mãe não seria bem receptiva a uma lição sobre os perigos de se deixar
uma criança sozinha com um pirulito nas mãos. A mulher que acompanhava a mãe insistiu:
— Hein? Por que você pegou o pirulito do menino?!
E aqui o tempo pareceu ter acelerado para recuperar o atraso. Instantaneamente, o supermercado pareceu ganhar vida e uma multidão se fez presente.
— Como é? — se assustou um senhor que ia empurrando um carrinho.
— Ele encostou no garoto? — perguntou um rapaz para a
namorada.
— Ele pegou... — começou uma jovem de um lado.
— ...no pirulito do menino? — completou uma senhora de outro.
— Abusou da criança?! — se espantava mais alguém.
— Sem-vergonha!
— Desgraçado!
— Seu filha da puta!
— Alô, é da polícia? Exatamente, o pedófilo tá assediando
geral aqui! — dizia uma moça ao celular.
De um ponto cego, um punho cortou o ar em sua direção e o
atingiu em cheio no rosto, com força suficiente para arrancar um dente. E assim
o fez.
Tonto e cambaleando, ele largou o pirulito. Acolheu com sucesso
mais dois punhos fechados no rosto antes mesmo que o doce tocasse o chão. Caiu
e continuou apanhando de todos os lados. Ao longe, pensou ter ouvido o som de sirenes, até que um chute no nariz recebido de uma garotinha que
aparentemente confundira sua cabeça com uma bola de futebol americano
finalmente o desacordou.
...
Minutos mais tarde, recuperou a consciência e sentiu gosto de ferro. “Ditado inverídico”, concluiu mentalmente, soltando uma cusparada vermelha. Ao tentar levar as mãos ao
nariz recentemente remodelado, percebeu que elas estavam algemadas às suas costas. Se encontrava na
calçada em frente ao mercado e uma linda policial vinha para ajudá-lo a se levantar. Foi
bem menos delicada do que sua beleza poderia ter sugerido.
— Ora, bom dia. A bela adormecida finalmente resolveu
acordar, foi? É bom se preparar, isso aí foi brincadeira de criança perto do
que vão fazer com você na cadeia — disse ela com indiferença, conduzindo-o para um carro de
polícia próximo. E então, voltando-se para um segundo policial: — Coloca ele lá atrás. E
pode esquecer, eu que vou voltar dirigindo.
— Ok, mas vai com calma, mulher — disse seu antiquado parceiro, rindo e abrindo a porta traseira do carro para o pedófilo. E completou o deboche: — Afinal você sabe que mulher no
volante é perigo constante, né?
O dia estava mesmo rendendo. A incontrolável curiosidade voltou a tomá-lo. Satisfeito
com a possibilidade de colocar à prova mais aquele ditado, estreou seu sorriso recém-desfalcado e sentou-se todo
animado no banco traseiro da viatura.
Sem demagogia nenhuma: EXCELENTE! Um dos melhores contos que li nos últimos tempos! Parabéns, perfeito!
ResponderExcluirAdorei, Dani! Muito engraçado e o final surpreendente. Adoro seu humor! Ta escrevendo mto, hein?! Beijos, Laila. P.s.: primeira vez que escrevo desse trem estranho que o Lucas comprou, sucesso!
ResponderExcluirParabéns, maninho! Muito bom o texto e o desfecho do conto! Continue postando. Abraço.
ResponderExcluirValeu pelo apoio, pessoar! Fico feliz que tenham gostado. =D
ResponderExcluirContinuarei praticando, tenho mais um ou outro pra colocar no "papel" ainda.
Laila, parabéns! Hahaha só não se deixe dominar pelo avançado aparato tecnológico. Já basta termos perdido o jovem Lucas para o lado negro.