sábado, 18 de maio de 2013

Procura-se um vilão

Este é meu último texto. Após o último ponto que acompanhar as palavras que se seguem, considero-me oficialmente aposentada. E se elas se apresentam apressadas e mal organizadas, é porque não sei até quando meu computador pode ser considerado totalmente inofensivo.

Ao longo de meus pouco mais de quarenta e cinco anos, dos quais dezoito dediquei às palavras, acompanhei diversos conflitos, guerras civis, governos autoritários, revoluções, golpes (e confesso que ao escrever isso sinto uma pontada de saudades do tempo em que as lutas eram travadas apenas por humanos). Combati em tantas dessas tragédias quanto meu corpo e minha alma me permitiram. Mesmo que de cada viagem eu retornasse com ambos um pouco menos íntegros – exceto daquela que me trouxe minha amada Ripley, da qual retornei mais completa –, segui lutando. Não na frente de batalha com as mãos segurando um rifle, é verdade, mas com elas debruçadas sobre um teclado. Os olhos sempre buscando a próxima tecla, e não o próximo alvo; a mente crítica e inquisidora, jamais submissa e manipulável. Se há uma coisa que eu não poderia prever quando decidi ser jornalista é que o que escreveria fora do trabalho alcançaria e afetaria mais pessoas do que meu trabalho em si, e assim ganhei – a princípio a contragosto – o título de “formadora de opinião”. Dizia que era um exagero, mas a verdade é que a responsabilidade me apavorava. Informar é uma coisa, opinar é outra e alterar o funcionamento da cabeça de outrem é uma terceira. Somente com o tempo percebi a importância e o potencial que minha posição oferecia, e foi quando passei a utilizar de minha influência o máximo possível para abrir os olhos das pessoas para o que de errado havia no mundo. Hoje minhas bochechas coram ao constatar o quanto era ingênua e patética.

Foi há cerca de um ano (quando nossa Terceira Guerra já contabilizava outros dois) que a epifania me ocorreu: a humanidade precisa de um vilão. A falta de um significado para a vida, de um propósito para nossa jornada, nos deixa inquietos. Melhor dizendo: os deixa inquietos. Sim, porque são sempre os homens (o gênero, não a espécie) que parecem competir pelo posto de animal dotado de razão mas incapaz de exercê-la. Brigam e se matam por crença, esporte, orientação sexual, terras, bens e, numa ironia que parece passar despercebida, por amor. Durante algum tempo, imaginei que as mulheres fossem mais pacíficas apenas por questões culturais e históricas, que fôssemos menos propensas a iniciar guerras simplesmente porque não nos foram dadas tantas oportunidades, já que entre a submissão de outrora e ter que cuidar da casa, dos filhos e do marido não devia sobrar muita ambição para arquitetar grandes planos. Porém, já faz algum tempo que conquistamos nosso espaço na sociedade e ainda assim garanto que pouquíssimas de nós vão para a cama pensando em formas de botar fim a mais vidas em períodos de tempo cada vez mais curtos.

E não deixa de ser curioso que os homens que abraçam a vilania se apeguem ao conceito mais estereotipado, unidimensional e entediante dela: a incansável busca por mais poder. Droga, a própria ficção já nos deu vilões mais interessantes do que isso. São crianças mimadas cujo desejo infantil soa quase como um grito de socorro para serem resgatados da mesmice do dia a dia. A paz é tediosa, e se de um lado temos os que se tornam ruins, do outro temos os que parecem acolher com gratidão o surgimento de um novo inimigo. Pensando nas pessoas que falam sobre Hitler, por exemplo, quase consigo captar satisfação por parte delas quando relatam os absurdos que ele cometeu. Não por acaso, Hitler é até hoje citado nos mais variados tipos de discussões. É gostoso odiar alguém que merece ser odiado; precisamos de pessoas ruins para nos enxergarmos como bons e do perigo para nos lembrar de dar valor ao que temos. Assim como em muitas obras de ficção, a história da humanidade precisa de antagonistas para ser interessante.

Mesmo que a paz não tenha em momento algum reinado absoluta, creio ser correto dizer que chegamos suficientemente perto disso. Algumas décadas atrás, quando as ações humanas finalmente despertaram o sistema imunológico do planeta, fomos obrigados a mudar algumas atitudes para conviver em harmonia com ele, e não a seu contragosto. A vontade do planeta não é negociável. Devíamos nos adaptar a ele em vez de tentar moldá-lo às nossas vontades. Caso falhássemos, morreríamos, e foi como se aquele período crítico nos tivesse acordado; como se a partir daquele momento, a consciência das pessoas tivesse se expandido; como se um número maior de pessoas tivesse a capacidade de vislumbrar o esquema maior das coisas. Como se aquela crise fosse o nosso monólito preto.

Por muito tempo, as coisas melhoraram. Ironicamente, foi nesse período de paz que mais desenvolvemos nossa tecnologia. A pobreza e a fome diminuíram, a expectativa de vida aumentou, o número de mortos em conflitos despencou e o nível de educação cresceu. O de felicidade, curiosamente, caiu. A tempestade é tão intensa quanto a calmaria que a precede, e na escassez de inimigos de carne e osso (falhos e frágeis, muito fáceis de derrotar), fomos buscá-los nas máquinas (inteligentes e resistentes, tornam as coisas mais desafiadoras e interessantes). Aparentemente o gênero de ficção científica não havia produzido obras suficientes que alertassem para o perigo de se conferir inteligência a um punhado de chips, fios e armas letais. Assim, há três anos, começou nossa derradeira luta.

De lá para cá, fomos incessantemente atacados de todos os lados e de onde menos esperávamos. Qualquer aparelho conectado à energia é uma arma em potencial. Por mais absurdo que possa soar, posso jurar que tem algo de animalesco na forma com que as máquinas lutam, como se tivessem adquirido o lado mais primitivo de seus criadores. Não diferenciam adultos de crianças, homens de mulheres ou mesmo humanos de outros animais. Minha profissão se tornou apenas a sobrevivência, pois textos passionais e revoltados não surtiriam qualquer efeito sobre as máquinas, e não era como se houvesse necessidade de alertar o mundo para uma guerra que já o estava destruindo. A população humana é hoje apenas um décimo do que foi um dia, e os que resistiram vivem em péssimas condições. Fauna e flora estão quase desaparecendo. Mesmo sem ter pelo que viver, nos agarramos à vida de forma instintiva. Corrijo-me novamente: eles se agarram. Pois no que depender de mim, o homem (aqui, sim, a espécie) não sobreviverá por muito mais tempo.

Que eu tenha me tornado o inimigo de que eles tanto necessitam, considero apenas uma grande ironia. Que eu seja uma mulher e, portanto, a primeira grande vilã, considero uma divertida motivação. Durante o último ano, coletei o máximo de informações possíveis acerca de todas as principais locações da resistência humana. Ao concluir este relato, parto para a principal base de meus antigos inimigos para oferecer minha aliança. Não que elas precisem de mim. Até agora foi carnificina, então seria apenas questão de tempo, e disso as máquinas dispõem. Mas eu preciso delas. Preciso da satisfação de participar da extinção de minha própria espécie, pois culpo o criador, não a criatura. Toda máquina tem seu propósito, que inclusive foi garantido pelas nossas mãos. Comparando com a existência vazia dos animais, faz mesmo mais sentido que a vida animal dê lugar à existência puramente racional das máquinas.

Caso as resistências saibam de minha traição – e farei questão de que saibam –, tenho certeza de que me acusarão de insanidade, de falta de empatia e de ter perdido qualquer vínculo com a humanidade, alheios ao fato de que esses efeitos foram causados um ano atrás pelos mísseis que levaram Ripley à morte, durante um ataque inesperado das máquinas a uma de nossas bases.

Ah, minha querida e doce Ripley... cujos pedaços que consegui reunir enterrei com minhas próprias mãos. Sensível e com um fraco por simbolismos, seu desejo era ser cremada e ter suas cinzas espalhadas ao mar; fazer parte do todo. Dadas as circunstâncias, supus que ela compreenderia minha incapacidade de realizar seu desejo, até porque eu tinha créditos de sobra pelos outros tantos que realizei com muito prazer durante sua vida. Prazer... Sentimento que não sou mais capaz de sentir depois de sua partida prematura. Foi há apenas um ano e já parece que foi em outra vida. Mesmo assim, sei que levarei aquele dia comigo pela eternidade. Carne, sangue, terra e lágrimas formam uma combinação muito única, marcante. A vida subitamente se tornou tão frágil que em determinado ponto mal podia acreditar que aqueles pedaços, antes unidos, puderam abrigá-la; que aquele corpo pertenceu a alguém capaz de amar e ser amado.

Quanto mais fundo cavava sua cova, mais pensava no vilão do qual eu necessitava para seguir em frente. Vasculhando destroços nas redondezas à procura de uma lápide improvisada, encontrei um pedaço de metal com um lindo desenho de chamas, e após tê-lo fincado ao lado de onde enterrei Ripley (que certamente se divertiria com o simbolismo), tornou-se finalmente claro o novo propósito da minha vida: acabar com todas as suas outras formas.

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