domingo, 25 de agosto de 2013

The Newsroom e o jornalismo

The Newsroom é uma série que acompanha os bastidores de um programa de notícias apresentado por Will McAvoy. Interpretado por Jeff Daniels, o Debi de Debi & Lóide (sério), Will é um âncora extremamente arrogante e, contraditoriamente, muito inseguro. Quando uma antiga companheira, McKenzie, volta a fazer parte de sua vida, ele se vê desafiado a sair de uma situação confortável para assumir riscos em nome de uma boa causa.

A série aborda o dia-a-dia da redação de notícias e as relações entre os integrantes da equipe desse programa fictício, usando como pano de fundo acontecimentos reais para desenvolver todo o drama entre os personagens. Um esquema tipo Titanic. O elenco conta também com Emily Mortimer, Dev Patel (mais conhecido como "o menino de Quem quer ser um milionário?"), a simpática Olivia Munn e o carismático Sam Waterston e seu aparente Parkinson seletivo na cabeça.

Com um delay de aproximadamente dois anos entre o ano em que se passa a série e o presente, os roteiristas têm tempo de escolher bem e tratar dos assuntos mais polêmicos de um passado recente. Um derramamento gigante de óleo no oceano, ataques de drones no Oriente Médio, a morte de Bin Laden (ou “morte”, para alguns), a morte de Trayvon Martin por George Zimmerman, o Tea Party, a homofobia, a laicidade do Estado e muitos comentários absurdos feitos por políticos em campanhas, discursos, etc. Enfim, um prato cheio para um pessoal que acha que algumas bizarrices são exclusivas do Brasil e que tudo nos Estados Unidos é lindo e maravilhoso. E tem algo de fascinante em acompanhar as reações desses personagens enquanto eles se tornam cientes de acontecimentos importantíssimos dos quais o espectador já tem conhecimento; a busca por diferentes fontes, a confirmação de histórias, a excitação e o espanto com um furo de reportagem. É como assistir novamente a um filme acompanhado de amigos que nunca o viram e ficar observando as reações deles.

Mais recentemente, o movimento Occupy Wall Street começou a ser abordado em The Newsroom, e é interessante notar as semelhanças que a onda recente de protestos no Brasil tem com esse movimento. Toquei nesse ponto porque não tem como pensar nos protestos sem pensar no papel que a mídia tem (ou deveria ter) nisso tudo, e é aqui que reside a força da série e minha admiração por ela.

Acima de tudo, o destaque de The Newsroom fica por conta da ideologia de um jornalismo que não se vê por aí, quase utópico. O objetivo dessa equipe é reportar fatos e analisá-los sob todos os aspectos, prestar um serviço público e proteger os interesses do povo, independentemente dos próprios interesses e de interesses políticos ou corporativos. É tocar na ferida e dar tapa na cara de muita gente, sem cerimônias. A vontade que esses personagens demonstram, o caráter, o compromisso com a verdade, seja ela qual for, são realmente inspiradores. Ainda mais quando se vê a parcialidade escancarada de tantos veículos de grande alcance.

Together they stand aloneDiz muito, não?

E se já é um sonho infantil querer uma série brasileira de qualidade que faça o mesmo com acontecimentos locais, nem sei do que chamar o desejo de ter um jornalismo desse nível na nossa tão manipuladora mídia.

Desculpa, mas esse é o verdadeiro

Eu nunca consegui

Minha suja contribuição para o meme one does not simply.

sábado, 10 de agosto de 2013

A mão da espada

Já tem algum tempo que eu tenho um convênio médico. E já tinha algum tempo que eu — preguiçoso e grande defensor da ideia de que “quem procura, acha” — não fazia qualquer uso desse convênio, nem mesmo para exames preventivos. Oras, vai que o médico, ouvindo meu coração com o estetoscópio, vira e fala que tem um tumor gigante na minha cabeça? E que a forma de tratamento é amputar minha perna esquerda e esperar que ele escorra pelo buraco que ficar? Que meu cérebro é na verdade apenas 5% cérebro e 95% tumor? Ok, pelo menos isso explicaria bastante coisa...

Mas não tem problema, porque a vida achou que era muito dinheiro jogado fora e deu um jeito de fazer com que eu aproveitasse o convênio de algum jeito. Ela resolveu que eu ia quebrar um osso da mão jogando futebol cunzamigo. E não digo isso para pagar de o fodão que masculamente se machucou jogando bola, e que com muito orgulho superou a dor e continuou a partida, merecidamente recebendo uma medalha de “honra ao mérito” que custa um real e de ouro só tem a cor, com trompetes tocando ao fundo.

Não. Estou falando do cara que é considerado o “café com leite”; o “teleton”, se preferir. Do cara que sabe que os menos habilidosos que possuem o mínimo de sensatez devem ser goleiros durante a maior parte do jogo, esperando até que os outros se cansem e estejam com os pés cheios de bolhas para, aí sim, se arriscar a ir para a linha e tentar marcar seu golzinho. Estou falando do cara que descobriu que a conta chute forte + goleiro que vai na bola com mão de alface = encostar o dedão direito na parte de trás do pulso direito. Dando um significado todo novo à pergunta que já ouvi de alguns professores que não gostavam de calculadora na faculdade: “Puxa, mas vai te quebrar a mão se você resolver essa equação sozinho?”. Sim.

Quando ficaram sabendo qual osso quebrei, ouvi de três médicos diferentes e da minha avó (que já foi enfermeira) quase que invariavelmente a mesma frase: “Tanto osso no corpo para quebrar e você vai quebrar logo esse?”. Sabe por que falaram isso? Porque é o pior osso para se quebrar no corpo, e é bem comum precisar de cirurgia. E o malandrinho costuma precisar de umas boas 10 semanas imobilizado para se curar. Estou há duas semanas com o gesso; só faltam DOIS MESES.

Sabe o que significa ficar sem poder usar a mão direita por dois meses e meio? Sendo destro? Poxa, é a mão da espada, como diria Jamie Lannister. Significa que eu não consigo fazer nada direito. Significa usar a mão esquerda para o mouse E para digitar, o que desacelera “um pouco” a produtividade no trabalho. Significa que levo o triplo de tempo para digitar e tenho que escolher bem o que vale a pena postar (e o fato de que este post foi publicado diz algo sobre o meu conceito de “valer a pena”). Significa que eu não consigo sequer assinar meu nome, porque não tinha ideia que a esquerda era tão imprestável assim (não que eu escreva muito com caneta ou lápis; uso o Word até mesmo para anotar recados de telefone, mas seria bom ter a possibilidade).

Significa que a caceta desse gesso vai assistir comigo à última temporada inteira de Breaking Bad, que nem começou ainda. Significa também ficar dois meses e meio sem envolver minha genitália com a mão que vem sendo aperfeiçoada na tarefa durante toda minha vida (seu recalque bate na minha mão e quebra meu osso na tela do computador e volta na sua cara). Significa não conseguir me limpar direito. Significa tomar banho por dois meses e meio sem nunca ficar de fato limpo, porque enquanto se lava o resto do corpo, o braço e a mão do sujeito que sofre de hiperidrose ficam confinados numa toalha e num saco plástico, e à altura em que termino, o aroma resultante da “sauna localizada” faz com que eu me arrependa de ter ido para o banho para início de conversa. Em noites frias, significa ficar com a sensação de se estar com o antebraço mergulhado numa piscina fria, ou de se estar pescando no gelo usando a mão (eu imaginei que o gesso ajudaria a aquecer por cobrir a pele, mas o safadinho é bem frio e aparentemente é imune a roupas de frio e cobertores). Significa ficar com o dedão imobilizado na posição de joia durante um bom tempo. Por dois meses e meio, aparentemente tudo estará ok para mim.


Eis como me sinto.

Só agora percebo como tudo era ótimo antes de isso acontecer. Mas detesto todo aquele papo de que não se deve reclamar quando tem gente numa situação pior que a sua (vi um cara no hospital que cortou fora três dedos numa máquina de fazer caldo de cana; receita nova, pelo jeito). Até porque seguindo esse raciocínio, apenas uma pessoa no planeta poderia reclamar da vida, que seria a pessoa na pior situação possível. Alguém que perdeu um braço não pode reclamar porque outro alguém perdeu os dois, e o que perdeu os dois não pode reclamar porque um terceiro alguém nasceu com quatro e não consegue usar nenhum... e assim por diante até chegarmos à pessoa mais ferrada, a única que pode reclamar, que provavelmente é alguém que mora na Índia ou algo assim.

Se tem uma coisa que nunca se esquece é o nome de um osso que se quebra. O nome desse é escafoide.
É... fodeu mesmo. (Péssimo trocadilho, eu sei, mas aposto que você também faria. E outra, me dá um desconto vai, afinal não sei se já falei, mas eu quebrei um osso.)

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Onde eles estão?

Porque é óbvio que em algum lugar eles estão. De quem estou falando? De quem você quiser. Preenchido o requisito básico de estarem vivos, é claro, estou falando de quem você quiser.

Seus ídolos, por exemplo. O seu cantor favorito está em algum lugar da superfície da Terra neste exato momento. Sua atriz favorita está fazendo o ar entrar e sair dos pulmões agorinha mesmo. O diretor que você mais admira talvez esteja pensando, neste segundo, em algum aspecto do filme que você virá a adorar em breve. A escritora que mais te inspira, que mais te desafia e mais te provoca pode estar agora sofrendo para colocar no papel um sentimento que você divide com ela e ainda nem sabe. O comediante que consegue fazer você rir enquanto reflete sobre a vida pode estar criando uma piada genial enquanto você está lendo. O atleta que você mais admira está em algum lugar, com seu coração bombeando sangue pelo corpo. Independentemente de onde estão e do que estão fazendo agora, eles estão existindo.

Sempre que me pego pensando nisso, fico fascinado pela bizarrice da coisa. É estranho, não parece real. É como se no presente essas pessoas não existissem de fato. Existiram somente ao criar as coisas que tanto admiramos e durante o período em que as apreciamos, e depois disso elas somem no tempo e no espaço; mergulham no éter. Prontas para voltar à existência apenas quando nos convir. Até onde sei – e até que meus olhos me provem o contrário – essas pessoas são apenas projeções. Talvez daí venha a vontade que os fãs têm de ver seus ídolos com os próprios olhos; flagrá-los no tédio da vida real que engole os meros mortais para torná-los mais palpáveis, de certa forma.

O mesmo raciocínio se aplica também ao futuro amor da sua vida (ok, não sei qual é o status de relacionamento do leitor, mas usei “futuro” porque não acho que você estaria lendo estas bobagens se já tivesse alguém para chamar de seu). Só que aqui a certeza da existência... bem, não existe. Nada garante que haja alguém para mim ou para você por aí. Mas digamos – em nome de um falso otimismo utilizado pelo autor apenas para não deprimir o leitor – que exista essa pessoa para você. E supondo que uma diferença muito grande entre as idades de um casal te incomode (caso contrário, sua metade da laranja talvez nem tenha nascido ainda; afinal, em alguns casais, um deles já tinha mais de vinte, trinta ou sei lá quantos anos antes mesmo que o outro tivesse nascido), ela também já se encontra em algum lugar do planeta neste momento, respirando, cérebro trabalhando e tudo o mais. E mais uma vez eu me fascino ao imaginar que apenas a sucessão de alguns eventos, cada um no seu devido tempo, levará vocês dois a se encontrar.

Você talvez até já tenha pegado o mesmo ônibus que essa pessoa, ou ficado atrás dela na fila da loteca, ido no mesmo show que ela, xingado ela no trânsito, achado a moeda que ela deixou cair na rua, cantado “Parabéns” pra ela quando alguém “puxou” na lanchonete, atendido o telefone quando ela ligou por engano para sua casa ou até mesmo a tenha observado com interesse e desejo, mesmo que não vá se lembrar disso quando se conhecerem de fato.

E eu, grande fã do acaso, gosto de pensar que entre as pouquíssimas pessoas que lerão este texto, talvez esteja a mulher que um dia eu conhecerei e que despertará em mim o incontrolável desejo de fazê-la feliz.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Chute na fé

Final de campeonato. Um dos importantes. A partida está empatada aos 47 minutos do segundo tempo, como não poderia deixar de ser para que o autor alcance os efeitos desejados. Durante uma jogada ofensiva de um dos times, o zagueiro do time adversário consegue roubar a bola e a isola, o que se transforma num lançamento providencial para um companheiro atacante, numa jogada que o zagueiro mais tarde admitirá ter sido planejada.

A bola viaja pelo ar enquanto a torcida enche o mesmo com gritos de entusiasmo. O craque que inexplicavelmente ganha milhões por mês domina a gorduchinha praticamente sozinho no campo de ataque e avança em direção à área. O goleiro sai do gol para fechar o ângulo, na esperança de se sair tão bem na tarefa quanto seu esfíncter se saiu ao se fechar. O atacante invade a grande área, avalia a posição do goleiro, escolhe um canto do gol, prepara o chute e...

E aí ele sente.

Num daqueles momentos que só a ficção medíocre pode proporcionar, o mundo todo para e ele sente. Sente que a Dona Brigite escolheu um lugar diferente do sofá para se sentar. Sente que o Almeidinha não colocou o copo com água em cima da televisão. Que o Leandro não vestiu aquela mesma camisa de sempre (parte do uniforme do time nos anos 80) porque já não mais cabia nela. Que o Tuco lá da pizzaria não colocou aquele fio de pentelho na massa da primeira pizza do dia, o que já havia ajudado a garantir o campeonato para o time duas vezes no passado. Como ter certeza da vitória quando seus torcedores abandonam a força desses pequenos rituais?

Porém, para seu alívio, ele sente também que o Cabeleira lá na arquibancada está usando sua cueca da sorte, aquela que ele usa em todos os jogos e não lava nunca, mesmo que suas nádegas sejam sua principal fonte de suor. Sente que Alzira fez sua parte ao pisar no chão da cozinha com o dedão esquerdo do pé direito no terceiro azulejo da coluna do meio contando em ordem crescente da direita para a esquerda. Que Arthur deixou de se masturbar no dia anterior ao jogo, crente de que isso azarava o dia seguinte.

Mas não são apenas os torcedores do seu time que têm acesso a essas táticas, e o nosso atacante sente que do lado de lá também houve mobilização por parte de uns e abandono da causa por parte de outros. O casal Júlia e Ricardo, por exemplo, optou pela posição do “frango assado” no sexo pré-jogo, que vinha se mostrando mais eficaz do que o “coqueirinho” (apesar de a “bate-estaca” gerar bons resultados também). Já Clarissa cansou de piscar os olhos freneticamente enquanto seu time está com a posse da bola e decidiu que a vida é muito curta para acompanhar um esporte que pode acabar em empate, ao passo que Feliciano continua tomando o próprio sêmem em dia de jogo, tática que se mostrou eficaz em apenas 24% das vezes – o que talvez indique que o futebol já não tem qualquer peso sobre a decisão do rapaz de ingerir o viscoso líquido.

E aqui o atacante sente também todas as orações sendo feitas por torcedores de ambos os times, pois é de conhecimento geral que Deus é um grande fã do esporte e costuma meter a mão nos resultados de acordo com a frequência e intensidade dos pedidos. Isso, claro, somente quando sobra um tempinho da cansativa tarefa que é ignorar as orações de todo o resto da humanidade.

Curiosamente – e apesar de toda a relevância dos dados levantados pelo nosso atacante –, assim que o mundo volta a girar e o movimento do chute se completa, é o simples acaso que entra em cena para definir o resultado do lance, do jogo e de todos os eventos que se seguem. E os mais céticos diriam que assim sempre foi e sempre será.

domingo, 16 de junho de 2013

Crítica: Star Trek Into Darkness

Antes de mais nada, é preciso deixar claro que não sou conhecedor da mitologia Star Trek e não assisti às séries nem aos filmes antigos (com exceção do longa anterior a este, do qual gosto muito). Além disso, mesmo possuindo todas as características de um, não sou desses fãs apaixonados que discutem incansavelmente qual a melhor série, Star Wars ou Star Trek (apesar de gostar mais da segunda). Portanto, quando o nome de determinado personagem é revelado, por exemplo, apenas registro a informação e sigo em frente, enquanto os espectadores à minha volta manifestam surpresa e entusiasmo. Saiba que é dessa pessoa que vem o texto a seguir.

James Kirk (Chris Pine) está agora no comando da USS Enterprise, imprimindo nas missões que lidera toda a sua impulsividade e o seu descaso para com regras. Depois de quebrar o regulamento ao permitir que os habitantes primitivos de um planeta avistassem a Enterprise durante uma missão de socorro (numa sequência que curiosa e inesperadamente flerta com a ideia de que povos primitivos possam tomar alienígenas e sua tecnologia avançada por divindades e magia), Kirk vê seu posto de capitão ameaçado ao mesmo tempo em que um poderoso terrorista com objetivos desconhecidos (Benedict Cumberbatch) começa a botar seus planos em ação.

Assim somos apresentados ao vilão, cuja natureza intrigante fica clara logo no início com a troca de favores entre ele e outro personagem – e o plano que mostra o resultado de um sacrifício para logo em seguida exibir o motivo do mesmo é particularmente forte por nos fazer refletir quanto à moralidade do ato. Aliás, o sacrifício é algo que permeia toda a narrativa. Várias vezes, vemos tripulantes da Enterprise dispostos ao sacrifício para salvar uns aos outros, o que poderia eventualmente perder o impacto e soar artificial, mas aqui acaba criando um sentimento de união, de pertencimento, como numa família. Portanto, não deixa de ser curioso que Spock (Zachary Quinto) – de quem constantemente é cobrado algum tipo de demonstração de empatia mesmo que sua origem parcialmente vulcaniana seja de conhecimento geral – protagonize alguns dos momentos mais tocantes do filme. Quinto se estabelece de vez como sucessor de Leonard Nimoy (ou seria predecessor?) ao atingir um ótimo balanço entre razão e emoção, que dão força aos raros momentos em que esta prevalece sobre aquela.

Ainda no que se refere a vidas perdidas, J.J. Abrams é corajoso ao não tentar diminuir as consequências de determinados eventos (dentro dos limites da classificação indicativa, é claro), diferentemente dos responsáveis por Os Vingadores, por exemplo, que parecem querer que o espectador acredite que nem uma única vida inocente foi perdida durante um ataque alienígena. Abrams também ganha créditos ao não ignorar os trágicos eventos do filme anterior (tornando este uma sequência e não apenas mais um da série), o que contribui para aumentar o tom de urgência nos vários momentos em que tudo parece estar perdido e nos faz temer pelo futuro dos personagens.

Com um subtexto político, a trama de Star Trek Into Darkness gira em torno de um jogo de interesses no qual uns prezam pela integridade ideológica e outros julgam que os fins justificam os meios (e é interessante notar como, na cena em que um personagem importante desse jogo nos é apresentado, a maquete com a evolução das naves espaciais nos dá uma dica sobre a participação dele na história). Frequentemente, as ações dos personagens são influenciadas pela ideologia daqueles pelos quais possuem mais carinho e respeito. Nesse sentido, Pike (Bruce Greenwood) se estabelece como a figura paterna que Kirk jamais teve e Uhura (a bela Zoe Saldana) começa a confrontar a inexpressividade de Spock. Scotty (o ótimo Simon Pegg) e Bones (Karl Urban) reprisam bem seus papéis, servindo novamente como um bem-vindo alívio cômico. Já o Chekov de Anton Yelchin não ganha tanto espaço quanto no episódio anterior para nos divertir com seu estranho sotaque, ao passo que o sempre carismático John Cho também perde espaço com seu Sulu, apesar de possuir cenas mais marcantes. Fechando o elenco, temos o vilão de Cumberbatch (merecidamente reconhecido por seu ótimo trabalho na série britânica Sherlock), criando um personagem cuja superfície fria e calculista (que chega a tornar Spock emotivo quando comparado a ele) esconde revolta e uma ira quase animalesca.

Do ponto de vista técnico, J.J. Abrams cria ótimas sequências de ação e momentos de tensão, auxiliado pela montagem quase episódica que os objetivos dos personagens fornecem. Já seus quadros inclinados e travellings são moderados e bem utilizados principalmente ao conferir um bom ritmo às discussões e tomadas de decisões rápidas por parte dos tripulantes. Como não poderia deixar de ser numa produção dessas, os efeitos visuais e o design de produção são impecáveis, e, juntamente com a fotografia, criam ambientes únicos para cada locação que refletem a natureza de quem os habita e ajudam a contar a história. Destaco também o momento em que os tripulantes da Enterprise enfrentam um problema com a gravidade dentro da nave, numa sequência que parece ter saído de A Origem e que transforma longos e inofensivos corredores em fundos e perigosos poços.

E se por um lado fiquei satisfeito de conferir o novo “visual” externo do momento em que as naves entram em velocidade de dobra (oras, se de dentro vemos a luz das estrelas “esticando”, por que não esticar também as naves quando as observamos de fora?), por outro não consigo entender a obsessão de Abrams por seus malditos flares, que aqui parecem ter atingido o seu máximo (ou assim espero). Abrams parece ser o único que não vê mal algum em constantemente adicionar os reflexos artificiais das lentes que atrapalham a visão que os espectadores terão de seu filme.

Star Trek Into Darkness mostra que o ótimo reboot de 2009 não foi um acidente e que ainda há, sem trocadilhos, muito espaço para exploração na série. Nem mesmo o desfecho um tanto quanto previsível diminui os méritos do filme, já que sua previsibilidade é visível apenas para o espectador e não para os personagens, mantendo intacta e legítima a força de seus momentos finais. Mal posso esperar pela continuação.

(5 estrelas em 5)


Obs: A versão 3D é dispensável, pois é meio problemática e desnecessária, além de atrapalhar a legenda aqui e ali.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Tão fácil quanto tirar doce de criança

Seria um ditado verídico? Enquanto observava aquele menino no carrinho de bebê chupando um pirulito, a dúvida cresceu desmedidamente dentro dele. Por algum motivo, aquilo havia se tornado importante. Perdera a noção do tempo e encontrava-se parado com a boca entreaberta, a mão suspensa no ar ainda travada no movimento de colocar o saco de nozes no carrinho de compras. Passados mais alguns segundos, reconheceu que não seria muito sensato matar a curiosidade e voltou sua atenção para os preços marcados na prateleira. Apenas por alguns instantes.

Relutante, olhou novamente para a criança. Estava sozinha na ala de congelados do supermercado, do outro lado do corredor central que divide todas as alas ao meio. Não parecia notar sua presença, apenas tinha olhos para seu pirulito. Mesmo que notasse, não poderia fazer muita coisa para impedir. Quem se utiliza de um carrinho de bebê como meio de transporte não costuma passar a impressão de possuir grandes habilidades em autodefesa.

"Dane-se". Que mal faria surrupiar-lhe o doce? Seria por uma boa causa, ou assim lhe pareceu naquele momento. Abandonou as compras e partiu em direção ao menino. Cruzou o corredor central olhando por cima do ombro e para os lados, temendo algum flagrante. Ninguém, o mercado parecia deserto. Era muita sorte para uma pessoa só, e seu êxtase crescia exponencialmente a cada passo. Chegando bem perto, parou de frente para o menino, que o olhou com um sorriso. Ele retribuiu o gesto com uma versão psicótica do próprio. Abriu os dedos gorduchos da criança, tomou-lhe o pirulito e colocou-o na própria boca.

Mal podia acreditar. O estupor era indescritível. Completamente descabido, era verdade, mas ainda assim orgástico. Sentia-se realizado, completo. Sorriu com o pirulito na boca, o olhar vazio e distante. E assim permaneceu por um instante que pareceu durar horas.

A criança, com os reflexos de alguém que ainda não os desenvolvera completamente, começava a dar falta de seu doce. Lentamente, contraiu o rosto. Sem dispor de lágrimas prontas para a situação inesperada e injusta, apenas abriu a boca, fechou os olhos e berrou.

— ...porque semana passada o preço do tomate era um assalto, ainda bem que...  ia dizendo uma mulher que surgira do nada para outra cuja materialização ele jurava ter testemunhado. Ela parou. E então, olhando da criança para o homem e de volta para a primeira:  O que você tá fazendo com meu filho?!

Resgatado de sua pequena viagem, tirou o pirulito da boca e apenas devolveu o olhar. Se ele ao menos se lembrasse como pronunciar palavras, talvez pudesse arriscar uma tentativa de explicação, mesmo que nenhuma lhe ocorresse no momento. Depois de pensar alguns segundos, concluiu que sua mudez temporária não era de todo mal, já que a única coisa que lhe passou pela cabeça não iria melhorar sua situação. Tinha certeza de que naquele momento a mãe não seria bem receptiva a uma lição sobre os perigos de se deixar uma criança sozinha com um pirulito nas mãos. A mulher que acompanhava a mãe insistiu:

 Hein? Por que você pegou o pirulito do menino?!

E aqui o tempo pareceu ter acelerado para recuperar o atraso. Instantaneamente, o supermercado pareceu ganhar vida e uma multidão se fez presente.

 Como é?  se assustou um senhor que ia empurrando um carrinho.

 Ele encostou no garoto?  perguntou um rapaz para a namorada.

 Ele pegou...  começou uma jovem de um lado.

 ...no pirulito do menino?  completou uma senhora de outro.

 Abusou da criança?!  se espantava mais alguém.

 Sem-vergonha!

 Desgraçado!

 Seu filha da puta!

 Alô, é da polícia? Exatamente, o pedófilo tá assediando geral aqui!  dizia uma moça ao celular.

De um ponto cego, um punho cortou o ar em sua direção e o atingiu em cheio no rosto, com força suficiente para arrancar um dente. E assim o fez.

Tonto e cambaleando, ele largou o pirulito. Acolheu com sucesso mais dois punhos fechados no rosto antes mesmo que o doce tocasse o chão. Caiu e continuou apanhando de todos os lados. Ao longe, pensou ter ouvido o som de sirenes, até que um chute no nariz recebido de uma garotinha que aparentemente confundira sua cabeça com uma bola de futebol americano finalmente o desacordou.

...

Minutos mais tarde, recuperou a consciência e sentiu gosto de ferro. “Ditado inverídico”, concluiu mentalmente, soltando uma cusparada vermelha. Ao tentar levar as mãos ao nariz recentemente remodelado, percebeu que elas estavam algemadas às suas costas. Se encontrava na calçada em frente ao mercado e uma linda policial vinha para ajudá-lo a se levantar. Foi bem menos delicada do que sua beleza poderia ter sugerido.

 Ora, bom dia. A bela adormecida finalmente resolveu acordar, foi? É bom se preparar, isso aí foi brincadeira de criança perto do que vão fazer com você na cadeia  disse ela com indiferença, conduzindo-o para um carro de polícia próximo. E então, voltando-se para um segundo policial:  Coloca ele lá atrás. E pode esquecer, eu que vou voltar dirigindo.

 Ok, mas vai com calma, mulher  disse seu antiquado parceiro, rindo e abrindo a porta traseira do carro para o pedófilo. E completou o deboche:  Afinal você sabe que mulher no volante é perigo constante, né?

O dia estava mesmo rendendo. A incontrolável curiosidade voltou a tomá-lo. Satisfeito com a possibilidade de colocar à prova mais aquele ditado, estreou seu sorriso recém-desfalcado e sentou-se todo animado no banco traseiro da viatura.

sábado, 18 de maio de 2013

Procura-se um vilão

Este é meu último texto. Após o último ponto que acompanhar as palavras que se seguem, considero-me oficialmente aposentada. E se elas se apresentam apressadas e mal organizadas, é porque não sei até quando meu computador pode ser considerado totalmente inofensivo.

Ao longo de meus pouco mais de quarenta e cinco anos, dos quais dezoito dediquei às palavras, acompanhei diversos conflitos, guerras civis, governos autoritários, revoluções, golpes (e confesso que ao escrever isso sinto uma pontada de saudades do tempo em que as lutas eram travadas apenas por humanos). Combati em tantas dessas tragédias quanto meu corpo e minha alma me permitiram. Mesmo que de cada viagem eu retornasse com ambos um pouco menos íntegros – exceto daquela que me trouxe minha amada Ripley, da qual retornei mais completa –, segui lutando. Não na frente de batalha com as mãos segurando um rifle, é verdade, mas com elas debruçadas sobre um teclado. Os olhos sempre buscando a próxima tecla, e não o próximo alvo; a mente crítica e inquisidora, jamais submissa e manipulável. Se há uma coisa que eu não poderia prever quando decidi ser jornalista é que o que escreveria fora do trabalho alcançaria e afetaria mais pessoas do que meu trabalho em si, e assim ganhei – a princípio a contragosto – o título de “formadora de opinião”. Dizia que era um exagero, mas a verdade é que a responsabilidade me apavorava. Informar é uma coisa, opinar é outra e alterar o funcionamento da cabeça de outrem é uma terceira. Somente com o tempo percebi a importância e o potencial que minha posição oferecia, e foi quando passei a utilizar de minha influência o máximo possível para abrir os olhos das pessoas para o que de errado havia no mundo. Hoje minhas bochechas coram ao constatar o quanto era ingênua e patética.

Foi há cerca de um ano (quando nossa Terceira Guerra já contabilizava outros dois) que a epifania me ocorreu: a humanidade precisa de um vilão. A falta de um significado para a vida, de um propósito para nossa jornada, nos deixa inquietos. Melhor dizendo: os deixa inquietos. Sim, porque são sempre os homens (o gênero, não a espécie) que parecem competir pelo posto de animal dotado de razão mas incapaz de exercê-la. Brigam e se matam por crença, esporte, orientação sexual, terras, bens e, numa ironia que parece passar despercebida, por amor. Durante algum tempo, imaginei que as mulheres fossem mais pacíficas apenas por questões culturais e históricas, que fôssemos menos propensas a iniciar guerras simplesmente porque não nos foram dadas tantas oportunidades, já que entre a submissão de outrora e ter que cuidar da casa, dos filhos e do marido não devia sobrar muita ambição para arquitetar grandes planos. Porém, já faz algum tempo que conquistamos nosso espaço na sociedade e ainda assim garanto que pouquíssimas de nós vão para a cama pensando em formas de botar fim a mais vidas em períodos de tempo cada vez mais curtos.

E não deixa de ser curioso que os homens que abraçam a vilania se apeguem ao conceito mais estereotipado, unidimensional e entediante dela: a incansável busca por mais poder. Droga, a própria ficção já nos deu vilões mais interessantes do que isso. São crianças mimadas cujo desejo infantil soa quase como um grito de socorro para serem resgatados da mesmice do dia a dia. A paz é tediosa, e se de um lado temos os que se tornam ruins, do outro temos os que parecem acolher com gratidão o surgimento de um novo inimigo. Pensando nas pessoas que falam sobre Hitler, por exemplo, quase consigo captar satisfação por parte delas quando relatam os absurdos que ele cometeu. Não por acaso, Hitler é até hoje citado nos mais variados tipos de discussões. É gostoso odiar alguém que merece ser odiado; precisamos de pessoas ruins para nos enxergarmos como bons e do perigo para nos lembrar de dar valor ao que temos. Assim como em muitas obras de ficção, a história da humanidade precisa de antagonistas para ser interessante.

Mesmo que a paz não tenha em momento algum reinado absoluta, creio ser correto dizer que chegamos suficientemente perto disso. Algumas décadas atrás, quando as ações humanas finalmente despertaram o sistema imunológico do planeta, fomos obrigados a mudar algumas atitudes para conviver em harmonia com ele, e não a seu contragosto. A vontade do planeta não é negociável. Devíamos nos adaptar a ele em vez de tentar moldá-lo às nossas vontades. Caso falhássemos, morreríamos, e foi como se aquele período crítico nos tivesse acordado; como se a partir daquele momento, a consciência das pessoas tivesse se expandido; como se um número maior de pessoas tivesse a capacidade de vislumbrar o esquema maior das coisas. Como se aquela crise fosse o nosso monólito preto.

Por muito tempo, as coisas melhoraram. Ironicamente, foi nesse período de paz que mais desenvolvemos nossa tecnologia. A pobreza e a fome diminuíram, a expectativa de vida aumentou, o número de mortos em conflitos despencou e o nível de educação cresceu. O de felicidade, curiosamente, caiu. A tempestade é tão intensa quanto a calmaria que a precede, e na escassez de inimigos de carne e osso (falhos e frágeis, muito fáceis de derrotar), fomos buscá-los nas máquinas (inteligentes e resistentes, tornam as coisas mais desafiadoras e interessantes). Aparentemente o gênero de ficção científica não havia produzido obras suficientes que alertassem para o perigo de se conferir inteligência a um punhado de chips, fios e armas letais. Assim, há três anos, começou nossa derradeira luta.

De lá para cá, fomos incessantemente atacados de todos os lados e de onde menos esperávamos. Qualquer aparelho conectado à energia é uma arma em potencial. Por mais absurdo que possa soar, posso jurar que tem algo de animalesco na forma com que as máquinas lutam, como se tivessem adquirido o lado mais primitivo de seus criadores. Não diferenciam adultos de crianças, homens de mulheres ou mesmo humanos de outros animais. Minha profissão se tornou apenas a sobrevivência, pois textos passionais e revoltados não surtiriam qualquer efeito sobre as máquinas, e não era como se houvesse necessidade de alertar o mundo para uma guerra que já o estava destruindo. A população humana é hoje apenas um décimo do que foi um dia, e os que resistiram vivem em péssimas condições. Fauna e flora estão quase desaparecendo. Mesmo sem ter pelo que viver, nos agarramos à vida de forma instintiva. Corrijo-me novamente: eles se agarram. Pois no que depender de mim, o homem (aqui, sim, a espécie) não sobreviverá por muito mais tempo.

Que eu tenha me tornado o inimigo de que eles tanto necessitam, considero apenas uma grande ironia. Que eu seja uma mulher e, portanto, a primeira grande vilã, considero uma divertida motivação. Durante o último ano, coletei o máximo de informações possíveis acerca de todas as principais locações da resistência humana. Ao concluir este relato, parto para a principal base de meus antigos inimigos para oferecer minha aliança. Não que elas precisem de mim. Até agora foi carnificina, então seria apenas questão de tempo, e disso as máquinas dispõem. Mas eu preciso delas. Preciso da satisfação de participar da extinção de minha própria espécie, pois culpo o criador, não a criatura. Toda máquina tem seu propósito, que inclusive foi garantido pelas nossas mãos. Comparando com a existência vazia dos animais, faz mesmo mais sentido que a vida animal dê lugar à existência puramente racional das máquinas.

Caso as resistências saibam de minha traição – e farei questão de que saibam –, tenho certeza de que me acusarão de insanidade, de falta de empatia e de ter perdido qualquer vínculo com a humanidade, alheios ao fato de que esses efeitos foram causados um ano atrás pelos mísseis que levaram Ripley à morte, durante um ataque inesperado das máquinas a uma de nossas bases.

Ah, minha querida e doce Ripley... cujos pedaços que consegui reunir enterrei com minhas próprias mãos. Sensível e com um fraco por simbolismos, seu desejo era ser cremada e ter suas cinzas espalhadas ao mar; fazer parte do todo. Dadas as circunstâncias, supus que ela compreenderia minha incapacidade de realizar seu desejo, até porque eu tinha créditos de sobra pelos outros tantos que realizei com muito prazer durante sua vida. Prazer... Sentimento que não sou mais capaz de sentir depois de sua partida prematura. Foi há apenas um ano e já parece que foi em outra vida. Mesmo assim, sei que levarei aquele dia comigo pela eternidade. Carne, sangue, terra e lágrimas formam uma combinação muito única, marcante. A vida subitamente se tornou tão frágil que em determinado ponto mal podia acreditar que aqueles pedaços, antes unidos, puderam abrigá-la; que aquele corpo pertenceu a alguém capaz de amar e ser amado.

Quanto mais fundo cavava sua cova, mais pensava no vilão do qual eu necessitava para seguir em frente. Vasculhando destroços nas redondezas à procura de uma lápide improvisada, encontrei um pedaço de metal com um lindo desenho de chamas, e após tê-lo fincado ao lado de onde enterrei Ripley (que certamente se divertiria com o simbolismo), tornou-se finalmente claro o novo propósito da minha vida: acabar com todas as suas outras formas.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Community e as comédias da atualidade

Community é minha série de TV favorita, e há muito tempo penso em escrever um post sobre ela, mas é sempre mais desafiador falar sobre algo quando é assim tão importante para mim (e sempre imaginei que provavelmente o resultado não seria digno do que esperei a princípio nem digno da série). Agora, ao final de sua quarta e muito provavelmente última temporada, me sinto obrigado a falar alguma coisa. Qualquer coisa.

Então começarei pelo básico, explicando que a série conta a história de sete pessoas bem incomuns que acabam se aproximando quando decidem montar um grupo de estudos numa faculdade comunitária mais incomum ainda, a Greendale Community College (aí o leitor, sabido que só ele, atina o porquê do nome da série).

O grupo é composto por Jeff (um egocêntrico ex-advogado que perdeu o título ao descobrirem que seu diploma era falso), Britta (uma feminista, ateia e ativista que na verdade nunca lutou por nada e sempre corta o barato dos outros), Abed (um viciado em cultura pop que sofre de Síndrome de Asperger e bota Sheldon Cooper no bolso), Troy (meu favorito, um ingênuo jogador de futebol americano que desenvolve com Abed a relação de amizade mais sensacional da história da TV), Pierce (um velho sem-noção cheio de preconceitos), Shirley (uma mãe religiosa que foi traída pelo marido e quer conquistar a independência) e Annie (uma estudiosa certinha que já foi para reabilitação por conta de seu vício em pílulas que a ajudavam nos estudos). Todos, cada um a seu modo, estão perdidos na vida, sem saber que rumo tomar.

Dois anos atrás, comecei a assistir Community por indicação de meu professor, o crítico de cinema Pablo Villaça, e estranhei o formato. Estava acostumado a outro tipo de comédia. Depois de me acostumar, comecei a gostar muito, mas confesso que não me considerava fanático. Até que um momento específico me fisgou de vez (tradução abaixo do vídeo):

Jeff: Eu estou trancado do lado de fora do meu antigo reino. Você, não. Entende o que eu tô falando?
Troy: Você tá falando que eu poderia ser um advogado.
Jeff: Estou falando que você é um jogador de futebol americano! Tá no seu sangue!
Troy: Isso é racista.
Jeff: Na sua alma.
Troy: Isso é racista.
Jeff: Seus olhos?
Troy: Isso não é gay?
Jeff: Isso é homofobia.
Troy: Isso é coisa de negro.
Jeff: Isso é racista!
Troy: Droga.

Foi nesse momento que tudo mudou. Foi aí que percebi que a trilha de risadas inserida na pós-produção de tantas outras comédias (a famosa laugh track, que sinaliza cada piada para que o espectador preguiçoso saiba quando dar risada) é completamente desnecessária e beira o insuportável. De repente, as comédias que possuem aquele texto lento e são gravadas com a presença de uma plateia se tornaram ultrapassadas e já não faziam mais sentido. Hoje, por exemplo, é mais difícil assistir a um episódio de Friends. Ainda guardo um carinho imenso por ela, mas isso só é possível porque levo em consideração a época em que foi ao ar. O que não faz sentido é que muitas comédias recentes ainda se utilizem desse formato. Sei que, felizmente, há boas comédias que já o abandonaram (Arrested Development, Modern Family e 30 Rock, por exemplo), mas de maneira geral suas audiências não costumam ser lá grandes coisas.

Quando virei fã de Community, senti vergonha de me considerar fã de The Big Bang Theory. Perceba a agilidade da pequena cena mostrada, a rápida inversão de posição entre Jeff e Troy e o espanto deste ao se descobrir mais racista do que quem ele acusou de racismo (apenas um fragmento insignificante do arsenal que Community possui) e compare com qualquer cena de The Big Bang Theory, Two and a Half Men ou Anger Management, para citar as mais famosas.

O que estou tentando dizer é que Community me fez evoluir como espectador, me tornou mais exigente. Ao constantemente sair da sua zona de conforto e se propor novos desafios, a série acaba desafiando também sua audiência, e é aí que se dá essa evolução. É bem verdade que ela começa relativamente contida e começa a se soltar mais com o tempo, mas é um período necessário para se encontrar o tom certo.

Em apenas três temporadas (sim, na verdade são quatro; mais sobre isso depois), tivemos três episódios em forma de documentário, outros três que tratam de guerras de paintball (dois dos quais parodiam o gênero western), um episódio que envolve um tipo de epidemia zumbi, um episódio feito com massinhas em stop-motion, um que se passa em ambientes “renderizados” na cabeça de Abed, um que explora diferentes linhas do tempo a partir de um mesmo evento, um que se passa dentro de um jogo de videogame 8-bit, uma paródia de O Senhor dos Anéis mesclada a um jogo de RPG, uma paródia de Glee, uma paródia de Law & Order, um episódio inteiro em busca de uma caneta e um episódio de flashbacks – típico de séries cômicas mais antigas – que subverte o estilo e resgata apenas cenas que não haviam sido vistas ainda. A cada estilo diferente, Community se adapta ao formato com o qual vai “brincar” de maneira impecável. Tudo isso calcado num mundo real; nada é sobrenatural ou mágico, por assim dizer. Essa descrição toda faz parecer que é uma série boba e infantil, e muitas vezes ela realmente é. Só que ela sabe disso e tira sarro de si mesma.

Além de tudo isso, Community consegue uma proeza que nunca vi em outro lugar: fazer graça na hora de cortar uma cena. É estranho, mas imediatamente após uma reação exagerada de determinado personagem, a cena é cortada e por algum motivo se torna ainda mais engraçada.
(Na remota possibilidade de alguém ter lido até aqui e ainda se interessar, colocarei ao final do post, numa seção à parte, alguns vídeos de momentos que gosto para dar uma ideia geral de como a série é.)

Já na parte de referências à cultura pop, a série faz uma coisa rara de se ver. Elas não são utilizadas de forma gratuita, apenas citando outras obras às cegas para pescar o afeto de um ou outro espectador. Em vez disso, Community as utiliza de forma orgânica – ou seja, a referência serve a algo maior em vez de ser a piada –, e mesmo quem não capte a referência será capaz de acompanhar o episódio. Para citar apenas alguns dos filmes e séries referenciados, temos: Star Wars, Indiana Jones, De Volta para o Futuro, Duro de Matar, Apocalypse Now, Clube dos Cinco, 2001: Uma Odisseia no Espaço, Rain Man, Pulp Fiction, Os Bons Companheiros, O Poderoso Chefão, Batman, Lost, Friends, Doctor Who e, acredite ou não, The Big Bang Theory.

Não me entenda mal, vez por outra eu dou risada com The Big Bang Theory e Two and a Half Men (sim, tenho problemas e sou desses que não conseguem largar e continuam assistindo, mesmo achando medíocre), mas as piadas são rasas e muitas vezes machistas e ofensivas. Não sei direito como explicar, mas nas séries medíocres parece que a piada só serve à própria piada, e nada mais. Ela não serve à história ou aos personagens, ela é apenas uma tirada para um momento específico que não será lembrada ao fim do episódio. TAHM está em seu décimo ano e não evoluiu um mês. Continua mostrando seus protagonistas passando de uma mulher fútil à outra. O Jake é uma anta, o Alan é um pobre fracassado e o Charlie/Walden é o ricaço boa pinta que as mulheres de plástico sempre desejam. A única diferença entre Charlie e Walden é que o segundo é mais gente boa e gosta do Alan. De resto, a série é idêntica desde que começou.

Mas tudo que é bom dura pouco, e assim será com Community. Por ser uma série que desafia o espectador em vez de entregar tudo de mão beijada, seria de se imaginar que a massa estadunidense não cairia de amores por ela. Com audiência baixíssima e nenhum reconhecimento das grandes premiações (mas todo o reconhecimento da crítica especializada), a emissora NBC estava pronta para cancelar a série ao final da terceira temporada. Só que – e aqui peço desculpas pela arrogância – os fãs de Community sabem que assistem à melhor comédia da TV, e sua pequena [porém devotada] base de fãs fez tanto barulho que a NBC aprovou uma quarta temporada. Seria de se comemorar, caso a notícia não viesse seguida do erro mais estúpido que a NBC poderia cometer: demitir Dan Harmon ao final da terceira temporada, o grande criador e responsável pela genialidade da série, e colocar outras pessoas para tocá-la adiante em sua quarta temporada na esperança de tornar Community mais “acessível” ao grande público e ganhar audiência (sim, eles queriam ganhar audiência na quarta temporada). O resultado é óbvio: sua qualidade caiu drasticamente e sua audiência não aumentou, não agradando a nenhum dos lados. Não que a quarta temporada seja ruim. Ela é razoavelmente boa, mas simplesmente não é Community.

O que nos trás ao provável fim da melhor série que já acompanhei, cujo último episódio vai ao ar hoje. E o que me resta é a esperança de que, no mínimo, Community tenha elevado o padrão das comédias e sirva de inspiração para futuras séries. Restam também as reprises que certamente farei de tempos em tempos. Ao leitor, caso tenha interesse, restam aqueles trechos mencionados antes e as três primeiras temporadas no Netflix.

#sixseasonsandweloveyouDanHarmon


Trechos comentados


Farei apenas um comentário antes de cada vídeo para situar melhor quem não conhece e porque, infelizmente, os vídeos não possuem legendas.

Numa partida de RPG, Annie, a garota, interpreta um personagem masculino e bem dotado que precisa de uma informação de Abed, que interpreta um personagem feminino que só entregará a informação depois de sexo.

Com raiva de seus filhos, Shirley simplesmente dá um troféu de caratê conquistado por um deles para Troy, logo o mais ingênuo do grupo. Em apenas trinta segundos, uma meia dúzia de piadas são feitas.

Abed não lida bem com o conceito de horário de verão. Esse negócio de perder uma hora e recuperá-la mais para frente no ano não faz sentido.

Troy, assim como seu melhor amigo Abed, é fã de filmes. Então, para ele, é chato admitir que não entendeu A Origem. “São muitos níveis”.

Abed tem uma lista de coisas que quer fazer durante a faculdade. Quebrar um violão, pegar a mais gostosa do campus (que não é a Annie ou a Britta, para surpresa de ambas) e puxar as calças de alguém.

Troy conta a história do primeiro soco que tomou.

“Uma coisa de Troy e Abed”. A imaginação da dupla não tem limites.

Abed e o barulho que as pessoas nos filmes que a Annie gosta costumam fazer quando se sentem ofendidas.

Troy acha que Britta deveria começar um clube de estraga-prazeres, já que ela sempre arruína tudo. Até analogias.

Um comercial feito fora da série, numa época em que a data de estreia da quarta temporada foi adiada e não se sabia quando ela voltaria ao ar. Troy e Abed sempre tiveram um programa de mentirinha, o “Troy and Abed in the morning”, no qual eles fingem que estão falando para câmeras. Community sempre utilizou muita metalinguagem, e aqui se utilizaram desse programa falso para falar diretamente com os fãs sobre a data de retorno da série, ainda achando espaço para alfinetar a emissora.

Uma demonstração do que falei sobre se arriscar e se adaptar aos diferentes estilos. Essa é a abertura normal da série.

Agora, essas são, na ordem, apenas as aberturas do episódio que é paródia de Law & Order, do episódio que brinca com O Senhor dos Anéis e do episódio que se passa quase todo dentro de um jogo de videogame 8-bit.





ISSO é Community.

A título de comparação, deixo você com o que The Big Bang Theory faz quando se arrisca a sair de sua zona de conforto.


Até a próxima, minha gente!