domingo, 15 de março de 2020

Trevas


Fechou o chuveiro e abriu a porta do boxe. Foi recebida pelo abraço gelado do ar, que logo deu lugar ao da toalha. Enquanto ela se enxugava, uma sensação estranha. Olhou ao redor e levou algum tempo para perceber seu reflexo no espelho acima da pia. O banheiro sem janelas sempre deixava o espelho embaçado. Não foi o caso desta vez.

Seu reflexo não poderia estar mais nítido, parado ao lado da porta. O estranhamento evoluiu para um incômodo ainda maior ao perceber-se incapaz de sustentar o reflexo do próprio olhar, então deu dois passos para o lado a fim de sair da frente do espelho. Curvou-se para enxugar as pernas e um arrepio percorreu-lhe o corpo. Um movimento às suas costas. A sensação de não estar sozinha.

Num ímpeto, levantou-se e virou para esquadrinhar o banheiro. Nada. Olhou novamente para o espelho, e do ângulo em que estava podia ver apenas o reflexo da porta. Desejando pela primeira vez que não morasse sozinha, deteve seu olhar longamente no reflexo da maçaneta, apreensiva. Nada.

Ora, que besteira! Esperava que a maçaneta se movesse sozinha? Abaixou-se para pegar as roupas sujas no chão e tentou pensar em algo menos perturbador. Mal levantou e seu coração disparou.

Num canto do espelho, na moldura mais próxima a ela, jurava ter visto o vulto de uma cabeça aparecer e desaparecer. Como se algo dentro do espelho se inclinasse para dar uma rápida espiada no banheiro. Tão rápida que mal acontecera e ela já questionava se não estava imaginando coisas. Não era possível. Provavelmente estava sugestionada pelo incômodo momentâneo. A apreensão transforma qualquer estalar de móvel em tiro de escopeta. Desejava sair correndo do banheiro, mas se forçou a comportar-se como um ser racional. Optou por voltar à frente do espelho para provar a si mesma que tudo estava bem e continuou seu ritual pós-banho.

Olhou para baixo para calçar os chinelos que costumava deixar embocados quase embaixo da pia. Quando levantou a cabeça, viu que seu reflexo estava ainda completando o movimento que ela já havia terminado. Como se o reflexo do espelho estivesse atrasado. Dessa vez teve certeza de não ter imaginado. Novamente, sentiu uma presença atrás de si, muito perto da nuca, e virou-se para olhar.

Mais uma vez, nada. Quando voltou-se para o espelho, ele havia abandonado qualquer sutileza. Deparou-se com o reflexo das costas da própria cabeça, que ainda não havia virado, numa extensão perturbadora do atraso anterior. Em choque, ela permaneceu imóvel. Só conseguia fitar o reflexo da própria nuca. Lentamente, a cabeça no espelho começou a se mexer, virando-se para encarar a própria dona, que foi tomada pelo pavor.

No rosto deformado que a encarava da superfície lisa do espelho, os olhos haviam sido tomados por buracos negros e esfumaçados que vertiam pequenos filetes de sangue, num choro que contrastava horripilantemente com a enorme boca sorridente. Os lábios iam de orelha a orelha e exibiam centenas de grandes dentes pretos, muito finos e pontiagudos, que se entrelaçavam perfeitamente e produziam um sorriso macabro que tomava mais da metade do rosto. O sangue que escorria dos olhos avançava até os dentes pretos e se perdia por entre eles, conferindo-lhes um brilho vivo escuro. A pele, de um cinza com manchas esverdeadas, tinha aspecto podre e revelava veias roxas de diferentes espessuras sob sua superfície.

Tentando apreender tudo que via no próprio reflexo, ela soltou um gemido desforme de desespero e sua visão estremeceu. Sentia que seu corpo estava prestes a ceder completamente a qualquer momento. Reuniu todas as forças que tinha para se manter consciente e virou-se para a porta, finalmente livre do transe que a paralisara até aquele momento, desesperada para sair daquele lugar. Enquanto sua mão cruzava o ar em direção à maçaneta à sua esquerda, viu de esguelha que seu reflexo deformado já havia alcançado a própria porta virtual e girava a tranca. No mesmo momento, a tranca da porta real também girou. Ela tentou destrancá-la, mas o trinco nem se mexia. Alucinada e aos prantos, usava todas as suas forças contra a maçaneta. Puxava, empurrava, batia. Em vão.

O pesadelo que se formara no espelho apenas a observava com aquele sorriso bizarro e imóvel, parecendo divertido. A mulher, exausta, abandonou seus esforços e encarou o espelho, trêmula. Ele abriu ainda mais seu sorriso e começou a sacudir de leve os próprios ombros, numa gargalhada contida. Lentamente, ele levantou a mão à altura da própria cabeça, o dedo indicador em riste revelando a pele cinza e a unha amarela carcomida. Mantinha o dedo parado no ar, como quem quisesse apenas exibi-lo para a mulher, que estava totalmente atordoada. Sua gargalhada foi se intensificando, em franco êxtase. Enjoada e tonta, a mulher acompanhou o dedo podre enquanto ele se dirigiu vagarosamente na direção da parede próxima à porta. Ria cada vez mais alto, agora com a boca medonha bem aberta, emitindo um som absurdo, inumano, jamais antes ouvido por qualquer criatura deste mundo.

Ela tapava os ouvidos, tentando proteger-se do som quase insuportável. Quando viu que o dedo parou perto do interruptor de luz, ela foi dominada pelo mais absoluto terror. Ouviu-se o clique do botão e o banheiro mergulhou em trevas conforme as gargalhadas grotescas se fundiam ao urro abismal que explodiu da mulher.

***

Algum tempo depois, a porta do banheiro se abriu. O que quer que tenha saído de dentro já não era mais ela.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Monstros

Ela não sentia medo deles. Tinha apenas 9 anos, uma idade em que o medo de monstros ainda é mais do que natural, e já os temia tanto quanto a uma joaninha. Já não se identificava mais com as colegas da escola, que a cada semana apareciam com toda a sorte de histórias e nomes novos, supostamente assustadores. Não para ela.
Não que não acreditasse nas amigas, ou mesmo em monstros. Pelo contrário. Tanto acreditava que por várias vezes via formas estranhas demais para serem obras do acaso surgindo nas sombras dançantes das árvores, projetadas na parede de seu quarto durante a noite. Era comum também ouvir movimentos embaixo da cama, como se unhas arranhassem o soalho de madeira do quarto. Sempre que baixava a cabeça para flagrar o monstro lá embaixo, nada via, mas podia jurar que sentia algo farfalhar em seus calcanhares toda vez que colocava os pés no chão para levantar da cama.
A visita mais constante que recebia, porém, era a do par de olhos vermelhos que apareciam na fresta do antigo armário de seu quarto, cuja porta defeituosa não mais fechava por completo. Era um olhar vivo, embora cansado. Levou algum tempo para deixar de considerá-lo ameaçador e perceber que na verdade transmitia certo abatimento; talvez até vergonha. Com efeito, lembravam-na dos olhos tristes e entregues que sua mãe carregava na maior parte do tempo, com a diferença que os dela eventualmente amanheciam roxos em vez de vermelhos.
Sua mãe era uma pessoa quieta. Estava sempre cabisbaixa, fosse quando o marido chegava da noitada com os amigos, fosse enquanto realizava as tarefas caseiras durante o dia. Tarefas essas que eram prontamente criticadas, aos berros, pelo marido, mal este colocava os pés dentro de casa.
Não, não tinha medo dos olhos no armário. Nem de qualquer outro monstro. Por que teria, se nenhum deles jamais havia feito mal algum a ela?
Medo mesmo, daqueles paralisantes, ela sentia sempre que a porta de seu quarto era aberta lentamente no meio da noite, revelando uma silhueta sombria. Seu pequeno coração saltava e batia violenta e audivelmente, o que parecia agradar o invasor, que se detinha algum tempo no batente da porta para saborear o que estava por vir. Inutilmente, ela fingia estar dormindo, traída impiedosamente por sua respiração pesada e falha e pelos tremores que lhe percorriam o pequeno corpo. Nada que jamais tivesse impedido a silhueta de seu pai de entrar no quarto, avançar até a cama da filha e se meter embaixo das cobertas, sussurrando em seu ouvido que era hora de brincar.
A partir desse ponto, só lhe restava virar para o lado oposto e cair no choro, cujo som era sufocado pela manzorra do sujeito, que lhe tapava a boca e dominava toda a parte inferior da cabeça.
Virou-se para fitar o armário. E lá estavam eles de novo, os impotentes olhos vermelhos, observando. E tudo o que a menina conseguia fazer era devolver-lhe o olhar, carregado de lágrimas, frustração e decepção. Como se perguntasse a quem estava lá dentro por que não saía para salvá-la.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Um filme

Sozinha, ela aguarda pacientemente que algo aconteça. Já estava ali há um bom tempo, e estranhando que nem mesmo um pano de fundo para a história tivesse sido posto. É então que, de um canto, surge um rapaz bonito e musculoso, exibindo um sorriso cativante. Ele chega andando de peito estufado e para perto da moça, olhando para os lados, fingindo não notá-la. Sem entender o que ele faz ali, ela o encara, como se pedindo uma explicação. Percebendo que o sujeito não vai se explicar, ela quebra o silêncio:
— Opa, tudo bom?
— Tudo certo — responde ele, que continua sorrindo e olhando para o nada.
Ainda sem entender, ela decide ser mais direta.
— Escuta, desculpa perguntar assim, mas quem é você?
— Imagina, não tem problema perguntar — responde ele, finalmente virando-se para ela, apertando sua mão mais forte do que o necessário e dizendo: — Prazer, moça, eu sou o protagonista. Só estou esperando o filme começar.
— Hã? Do que você está falando? Eu sou a protagonista.
Ele para, em choque; dá uma conferida nela de cima a baixo e solta uma gargalhada.
— Protagonista? Você?! Minha querida, com essa aparência você não conseguiria sequer ser meu interesse amoroso, quanto mais protagonista!
— Sim, sou a protagonista. Eu estava aqui antes de você, só esperando algum conflito surgir pra dar início ao filme. E quem disse que eu teria interesse em ser seu interesse?
— Como assim? Olha pra mim, garota — diz ele, gesticulando para o próprio corpo. — Por acaso você é lésbica?
— Não, só não estou interessada em você. Estou muito bem sozinha, obrigada.
De outro canto, surge outra mulher, com ar infantil.
— E você, quem é? — pergunta a protagonista.
— Olá! Eu sou uma personagem unidimensional. Sou extremamente bonita e gostosa, mas não tenho consciência disso. Só que lá no fundo eu tenho sim. Até este exato momento, eu só me relacionava com homens que não prestam e só me sentia atraída por eles, mas a partir do início do filme, convenientemente, algo em mim muda e começo a buscar alguém que não seja um cafajeste completo. Sou meiga e fofa, e consigo oscilar perfeitamente entre a moça tímida e puritana e a descolada sensual e provocativa. Não tenho personalidade própria, já que meus gostos e vontades mudam de acordo com a necessidade do roteiro.
— A-há! Você deve ser meu interesse amoroso! — anima-se o rapaz.
— Eu mesma!
— Encantado — diz ele, tomando-a pela cintura e puxando-a para perto. Sem nenhum motivo aparente, o casal começa a dançar lentamente, girando sem sair do lugar, encarando-se apaixonadamente, os olhos brilhando.
A protagonista acompanha tudo, boquiaberta.
— Gente, que amontoado de clichê! É disso que eu vou participar?! Eu vim aqui para me expressar, para passar por algo significativo, algo profundo e complexo que faça a audiência de fato se envolver com a história e se importar com os personagens, algo que extraia todo tipo de sentimentos e emoções das pessoas.
Eles param de dançar e o rapaz volta-se para a protagonista.
— Mas que conflitos você poderia ter, estando aqui sozinha? Nem par romântico você tem, minha cara. Como poderia ter alguma motivação? E outra, nessa sua historinha de merda, onde ficam as explosões, as perseguições? Ou os aliens, os efeitos visuais? Qual é o meu superpoder? Onde entra a parte em que eu resolvo toda a situação e saio só com alguns arranhões?
— Amor, afinal quem é essa daí?
— Diz ela que é a protagonista.
O casal explode em risadas. Param somente quando uma limusine branca entra em cena e estaciona bem perto dos três. Eles observam enquanto do banco traseiro desce um sujeito careca, trazendo um charuto na boca. Era tão gordo que o terno que vestia poderia ser usado como cabana. Assim que ele se levanta do banco, a limusine range audivelmente, num suspiro misto de alívio e gratidão.
— Só pode ser o vilão! — exclama o casal, em uníssono.
— Meio ofensivo... — diz a protagonista.
— Também achei — diz o careca, pegando algo de dentro do paletó. — Poderiam pelo menos ter esperado eu sacar a arma.
A protagonista gira os olhos, incapaz de acreditar em tamanha falta de originalidade.
— Estou procurando o protagonista deste filme — diz ele, apontando a arma para o rapaz e sua amada, que, por sua vez, apontam o dedo para a protagonista, amedrontados. O vilão vira a arma para a moça e a mede de cima a baixo. Sua gargalhada é ensurdecedora. Nem mesmo o casal consegue se segurar, rindo junto com o vilão, cujo rosto e careca ficam vermelhos e suados.
Secando as lágrimas, ele volta a apontar a arma para o casal, que para de rir abruptamente. O rapaz se coloca à frente de sua amada, protegendo-a.
— Tá bom, tá bom! Você me pegou, ok?! Eu sou o protagonista. Afinal eu era o único homem por aqui... Mas antes de eu conseguir virar a situação de forma absurdamente inverossímil, matar você e encerrar este filme, precisamos definir qual é o papel dessa mulher. Tolero qualquer coisa no meu filme, menos ponta solta! — Ele para e observa a protagonista, considerando as possibilidades. — E se ela fosse sua esposa? — pergunta ao vilão.
O sujeito coça a careca com a ponta da arma, ponderando.
— Hum... Nah, acho que seria mais orgânico ela ser uma coadjuvante, tipo sua irmã, amiga ou algo assim. — Ele estala os dedos, animado. — Já sei, ela pode ser sua friendzone!
— Tá difícil vocês entenderem que eu sou a protagonista, hein!
— Ou ela pode ser minha amiga lésbica — diz o interesse amoroso; discutiam como se a protagonista sequer estivesse presente. — Uma amiga com quem eu teria tido experiências homossexuais na faculdade, resultando em histórias que eu te contaria no começo do nosso relacionamento pra você me achar mais interessante e ousada.
— Ótima ideia, querida! Você bem que poderia ter tido uma amiga lésbica mais bonita, mas pra isso até que ela serve.
— Cara, já falei que sou hétero...
— Enfim, não importa! Preciso acabar logo com o protagonista e essa discussão não vai dar em nada. Por mim fica como ponta solta mesmo e que se dane! — diz o vilão, voltando a apontar a arma para o rapaz, prestes a puxar o gatilho.
Fora de quadro, surge o som de pneus derrapando. Que logo dá lugar ao som de metal colidindo e se deformando. E assim mais um carro entra em cena, desta vez em pleno processo de capotagem. O monte de metal retorcido avança rapidamente em direção ao casal, até que uma “quina” do carro bate no chão e o impulsiona para o alto, fazendo-o passar por cima dos dois em câmera lenta e indo de encontro ao vilão em alta velocidade. No susto, ele larga a arma, instantes antes de ser esmagado contra sua própria limusine. O resultado desse sanduíche automobilístico deveria ser uma explosão de carne, sangue e gordura, mas a cena é cortada antes para deixar a ideia apenas sugerida. Tudo pelo bem da classificação indicativa.
Voltamos então para a arma, que ainda está caindo, graças à maleabilidade do tempo que este tipo de mídia proporciona. Assim que atinge o chão, ela dispara sozinha e atinge a nossa pobre protagonista em cheio no coração, dando-lhe tempo apenas para sentir-se grata por estar deixando este filme. Ela cai morta sob os gritos de excitação do casal.
— Era disso que eu estava falando! Agora sim isso aqui está com cara de Hollywood!
— Verdade, já estava estranhando!
A porta do carro capotado se abre e o motorista sai dele, cambaleando. Ninguém parece notar que ele tem apenas um filete de sangue saindo do nariz, apesar de o carro parecer ter saído de um compressor de ferro-velho. Depois de sair do carro, ele se apruma e olha a cena à sua volta, analisando a situação.
— Você nos salvou! Muito obrigada! — diz a moça.
Passada a excitação inicial, o protagonista franze a testa, confuso, tentando entender:
— Mas peraí, qual é o seu papel no filme? Quem é você?
O motorista termina de conferir quem está vivo e quem está morto na cena e vira-se para o casal. Exibe um sorriso de satisfação e responde:
— Deus ex machina.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Pontuação

— O travessão tá errado aqui, cara. Ele não serve pra isso. Serve pra indicar diálogo ou (assim como os parênteses [e dentro deles os colchetes]) pra comentar ou acrescentar informações ao texto — uso que não é muito comum em textos mais informais.
— Ah, saquei. E pra que servem os dois-pontos?
— É muito simples a função dos dois-pontos: eles são usados pra indicar que em seguida alguma coisa será explicada.
— E o ponto de interrogação?
— Caramba, só falta me falar que também não sabe pra que serve a exclamação!
— Ah, pode pular a exclamação porque essa aí eu tenho quase certeza absoluta que sei.
— Tá bom, olha, vamos dar uma passada rápida pelas pontuações básicas, ok? Começando pela função das reticências, que...
— Servem pra marcar a interrupção de uma fala que ainda não estava terminada, pra indicar pausas longas numa fala enquanto se pensa no que vai falar e pra... e pra... hãã...
— E pra deixar alguma ideia sugerida ou implícita na fala, interrompendo-se antes de concluir. Mais ou menos como a sua alfabetização... Prosseguindo, as chamadas “aspas” são usadas pra destacar um exemplo ou uma citação que será feita. Por exemplo: “Foi aí que o professor de português falou: ‘Aspas simples são usadas dentro de aspas duplas.’ Só que a pontuação nesses casos é uma confusão, e nem mesmo o professor soube dizer se o ponto fica dentro ou fora das aspas”.
— E a vírgula, serve pra que mesmo?
— A vírgula, como você já deveria saber, indica uma pausa breve na leitura do texto e serve para diversas situações, como listar informações, separar frases encadeadas entre si e, assim como o travessão e os parênteses, para separar o aposto, entre outras funções. A vírgula é usada até pra separar o vocativo, cara! Ah, e muita gente acha que vírgula é a mesma coisa que ponto e vírgula; porém, o ponto e vírgula indica uma pausa média na leitura e é utilizado pra interromper um raciocínio pra depois continuá-lo, quase que começando uma frase nova, sabe? Serve pra separar uma série de itens elencados, e costuma aparecer bastante antes de conjunções, tais como: entretanto; contudo; todavia; logo; portanto; assim etc.
— Ah, mas agora você foi sacana também. Dava muito bem pra ter usado vírgulas ali, vai.
— Sacanagem é um sujeito como você ter recebido um diploma do ensino médio. Enfim, é isso, acho que cobrimos o básico. E agora chega dessa história porque detesto metalinguagem. Baita dum recurso vazio e pobre de se usar assim pra qualquer coisa.
— Metalinguagem. Meta... metalinguagem... Sim, claro, é verdade... Meta. Linguagem. Metalinguagem. Muito pobre mesmo, tem razão... Se escreve M-E-T-A-L-I-N-G-U-A-G-E-M, se bem me recordo. Vem da junção de “meta” com “linguagem”... Rá, quem ainda usa?! Pff... Metalinguagem.
— ...
— Mas vem cá, o que é mesmo met...?
— Ahhh, não! Desisto de você, cara, não quero mais papo contigo.
— Mas por quê?
— Porque não. E ponto-final!
— Droga, o único que eu sabia tava errado. Jurava que esse aí era o de exclamação.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Uma história

Não se vê por aí, este tipo de história. Provavelmente porque não funcionaria. Uma história em que conflitos não surgem, mudanças não acontecem. Eventos não se sucedem. Ideias não têm corpo. Sentimentos não têm vez. Nem voz. Uma história sem protagonista, sem antagonista. Sem personagens. Não se odeia, não se ama. Nem comédia, nem drama.

Uma história que não tem início por não ter de onde sair, que não tem meio por não haver um para a conduzir, que não tem fim por não ter aonde ir. Com nada interage e é indiferente ao que a rodeia. Por nada é permeada e nada ela permeia. Uma narrativa que não cria expectativa, que não tem resolução. O próprio tempo em suspensão.

Um conto que nada conta. Um narrador que nada narra. Por muito tempo, uma história assim não se mantém, e já vão faltando palavras que permitam-lhe ir além.

Nada nesta história existe. E, ainda assim, a existência desta história persiste.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Sozinhos no Universo

Entrou em casa e largou suas coisas numa poltrona, avisando em voz alta que havia chegado. Sem ouvir resposta, foi até a cozinha lavar as mãos. Pela janela em cima da pia, ele a viu no alto da pequena colina próxima, olhando pensativamente para as estrelas. Saiu para a noite clara pela porta dos fundos e atravessou o gramado. Subiu calmamente a colina e parou ao lado dela.
— Ficou sabendo da descoberta de hoje? — perguntou ela tranquilamente, sem tirar os olhos do céu.
— Do planeta? Fiquei, sim. Praticamente do mesmo tamanho do nosso, está na zona habitável de sua estrela e possui água no estado líquido. Excitante, não?
Ela virou para olhá-lo e sentiu um calor no peito ao vê-lo com um sorriso acolhedor no rosto.
— Pena que esteja tão longe. Qual a distância mesmo? — perguntou ele.
— Não lembro exatamente, sei apenas que uma simples troca de mensagens levaria milhares de anos para acontecer. Se houver vida inteligente, claro — adicionou rapidamente, falhando miseravelmente na tentativa de parecer ponderada.
— Tarefa para nossos descendentes, então — disse ele, acariciando a barriga dela.
— Ainda assim, na escala astronômica, a distância é ridiculamente pequena. Já imaginou? Vida na nossa galáxia. — Ela voltou a olhar para o céu e ele pôde ver o brilho em seus olhos. — Não num lugar longínquo do Universo, na nossa galáxia! No nosso “quintal”. Se a vida (mesmo com centenas de bilhões de galáxias, cada uma com centenas de bilhões de estrelas, que por sua vez possuem sabe-se lá quantos planetas em suas órbitas) achar por bem aparecer num planeta vizinho ao nosso, seria seguro supor que o Universo inteiro esteja transbordando de vida! Em todos os cantos e de todas as formas. Uma expansão gigantesca dos nossos horizontes. Imagine as diferentes culturas, as diferentes crenças, as histórias das civilizações, as espécies e anatomias, as línguas, as guerras e sistemas políticos, o desenvolvimento científico e tecnológico, as invenções, os bons e maus momentos, os heróis e os vilões, os artistas e as obras.
— Nem me fale, querida. Ainda tenho uma infinidade de livros para ler que foram escritos por aqui mesmo e você aí querendo aumentar a lista indefinidamente.
— Besta — disse, rindo. Ela baixou os olhos para o chão e subitamente ficou séria, esforçando-se para acreditar em suas próximas palavras: — Tenho certeza de que alguém em algum lugar do Universo está neste momento olhando para as estrelas e pensando exatamente nas mesmas coisas.
Mas ela não tinha. Como poderia quando o Universo respondia apenas com o silêncio? Continuou olhando para baixo e se deixou tomar pela ideia da solidão e do vazio cercando-os. Percebendo seu conflito interno, ele logo tratou de distraí-la.
— Olha que bonito, amor. Whovian e Trekker já estão se pondo — disse ele, apontando para o horizonte.
A noite foi ficando mais escura e uma brisa começou a soprar. Ainda no alto da colina, os dois entrelaçaram suas caudas carinhosamente e observaram em silêncio as duas luas tocarem o horizonte e desaparecerem sob ele.

domingo, 25 de agosto de 2013

The Newsroom e o jornalismo

The Newsroom é uma série que acompanha os bastidores de um programa de notícias apresentado por Will McAvoy. Interpretado por Jeff Daniels, o Debi de Debi & Lóide (sério), Will é um âncora extremamente arrogante e, contraditoriamente, muito inseguro. Quando uma antiga companheira, McKenzie, volta a fazer parte de sua vida, ele se vê desafiado a sair de uma situação confortável para assumir riscos em nome de uma boa causa.

A série aborda o dia-a-dia da redação de notícias e as relações entre os integrantes da equipe desse programa fictício, usando como pano de fundo acontecimentos reais para desenvolver todo o drama entre os personagens. Um esquema tipo Titanic. O elenco conta também com Emily Mortimer, Dev Patel (mais conhecido como "o menino de Quem quer ser um milionário?"), a simpática Olivia Munn e o carismático Sam Waterston e seu aparente Parkinson seletivo na cabeça.

Com um delay de aproximadamente dois anos entre o ano em que se passa a série e o presente, os roteiristas têm tempo de escolher bem e tratar dos assuntos mais polêmicos de um passado recente. Um derramamento gigante de óleo no oceano, ataques de drones no Oriente Médio, a morte de Bin Laden (ou “morte”, para alguns), a morte de Trayvon Martin por George Zimmerman, o Tea Party, a homofobia, a laicidade do Estado e muitos comentários absurdos feitos por políticos em campanhas, discursos, etc. Enfim, um prato cheio para um pessoal que acha que algumas bizarrices são exclusivas do Brasil e que tudo nos Estados Unidos é lindo e maravilhoso. E tem algo de fascinante em acompanhar as reações desses personagens enquanto eles se tornam cientes de acontecimentos importantíssimos dos quais o espectador já tem conhecimento; a busca por diferentes fontes, a confirmação de histórias, a excitação e o espanto com um furo de reportagem. É como assistir novamente a um filme acompanhado de amigos que nunca o viram e ficar observando as reações deles.

Mais recentemente, o movimento Occupy Wall Street começou a ser abordado em The Newsroom, e é interessante notar as semelhanças que a onda recente de protestos no Brasil tem com esse movimento. Toquei nesse ponto porque não tem como pensar nos protestos sem pensar no papel que a mídia tem (ou deveria ter) nisso tudo, e é aqui que reside a força da série e minha admiração por ela.

Acima de tudo, o destaque de The Newsroom fica por conta da ideologia de um jornalismo que não se vê por aí, quase utópico. O objetivo dessa equipe é reportar fatos e analisá-los sob todos os aspectos, prestar um serviço público e proteger os interesses do povo, independentemente dos próprios interesses e de interesses políticos ou corporativos. É tocar na ferida e dar tapa na cara de muita gente, sem cerimônias. A vontade que esses personagens demonstram, o caráter, o compromisso com a verdade, seja ela qual for, são realmente inspiradores. Ainda mais quando se vê a parcialidade escancarada de tantos veículos de grande alcance.

Together they stand aloneDiz muito, não?

E se já é um sonho infantil querer uma série brasileira de qualidade que faça o mesmo com acontecimentos locais, nem sei do que chamar o desejo de ter um jornalismo desse nível na nossa tão manipuladora mídia.