quinta-feira, 2 de julho de 2015

Um filme

Sozinha, ela aguarda pacientemente que algo aconteça. Já estava ali há um bom tempo, e estranhando que nem mesmo um pano de fundo para a história tivesse sido posto. É então que, de um canto, surge um rapaz bonito e musculoso, exibindo um sorriso cativante. Ele chega andando de peito estufado e para perto da moça, olhando para os lados, fingindo não notá-la. Sem entender o que ele faz ali, ela o encara, como se pedindo uma explicação. Percebendo que o sujeito não vai se explicar, ela quebra o silêncio:
— Opa, tudo bom?
— Tudo certo — responde ele, que continua sorrindo e olhando para o nada.
Ainda sem entender, ela decide ser mais direta.
— Escuta, desculpa perguntar assim, mas quem é você?
— Imagina, não tem problema perguntar — responde ele, finalmente virando-se para ela, apertando sua mão mais forte do que o necessário e dizendo: — Prazer, moça, eu sou o protagonista. Só estou esperando o filme começar.
— Hã? Do que você está falando? Eu sou a protagonista.
Ele para, em choque; dá uma conferida nela de cima a baixo e solta uma gargalhada.
— Protagonista? Você?! Minha querida, com essa aparência você não conseguiria sequer ser meu interesse amoroso, quanto mais protagonista!
— Sim, sou a protagonista. Eu estava aqui antes de você, só esperando algum conflito surgir pra dar início ao filme. E quem disse que eu teria interesse em ser seu interesse?
— Como assim? Olha pra mim, garota — diz ele, gesticulando para o próprio corpo. — Por acaso você é lésbica?
— Não, só não estou interessada em você. Estou muito bem sozinha, obrigada.
De outro canto, surge outra mulher, com ar infantil.
— E você, quem é? — pergunta a protagonista.
— Olá! Eu sou uma personagem unidimensional. Sou extremamente bonita e gostosa, mas não tenho consciência disso. Só que lá no fundo eu tenho sim. Até este exato momento, eu só me relacionava com homens que não prestam e só me sentia atraída por eles, mas a partir do início do filme, convenientemente, algo em mim muda e começo a buscar alguém que não seja um cafajeste completo. Sou meiga e fofa, e consigo oscilar perfeitamente entre a moça tímida e puritana e a descolada sensual e provocativa. Não tenho personalidade própria, já que meus gostos e vontades mudam de acordo com a necessidade do roteiro.
— A-há! Você deve ser meu interesse amoroso! — anima-se o rapaz.
— Eu mesma!
— Encantado — diz ele, tomando-a pela cintura e puxando-a para perto. Sem nenhum motivo aparente, o casal começa a dançar lentamente, girando sem sair do lugar, encarando-se apaixonadamente, os olhos brilhando.
A protagonista acompanha tudo, boquiaberta.
— Gente, que amontoado de clichê! É disso que eu vou participar?! Eu vim aqui para me expressar, para passar por algo significativo, algo profundo e complexo que faça a audiência de fato se envolver com a história e se importar com os personagens, algo que extraia todo tipo de sentimentos e emoções das pessoas.
Eles param de dançar e o rapaz volta-se para a protagonista.
— Mas que conflitos você poderia ter, estando aqui sozinha? Nem par romântico você tem, minha cara. Como poderia ter alguma motivação? E outra, nessa sua historinha de merda, onde ficam as explosões, as perseguições? Ou os aliens, os efeitos visuais? Qual é o meu superpoder? Onde entra a parte em que eu resolvo toda a situação e saio só com alguns arranhões?
— Amor, afinal quem é essa daí?
— Diz ela que é a protagonista.
O casal explode em risadas. Param somente quando uma limusine branca entra em cena e estaciona bem perto dos três. Eles observam enquanto do banco traseiro desce um sujeito careca, trazendo um charuto na boca. Era tão gordo que o terno que vestia poderia ser usado como cabana. Assim que ele se levanta do banco, a limusine range audivelmente, num suspiro misto de alívio e gratidão.
— Só pode ser o vilão! — exclama o casal, em uníssono.
— Meio ofensivo... — diz a protagonista.
— Também achei — diz o careca, pegando algo de dentro do paletó. — Poderiam pelo menos ter esperado eu sacar a arma.
A protagonista gira os olhos, incapaz de acreditar em tamanha falta de originalidade.
— Estou procurando o protagonista deste filme — diz ele, apontando a arma para o rapaz e sua amada, que, por sua vez, apontam o dedo para a protagonista, amedrontados. O vilão vira a arma para a moça e a mede de cima a baixo. Sua gargalhada é ensurdecedora. Nem mesmo o casal consegue se segurar, rindo junto com o vilão, cujo rosto e careca ficam vermelhos e suados.
Secando as lágrimas, ele volta a apontar a arma para o casal, que para de rir abruptamente. O rapaz se coloca à frente de sua amada, protegendo-a.
— Tá bom, tá bom! Você me pegou, ok?! Eu sou o protagonista. Afinal eu era o único homem por aqui... Mas antes de eu conseguir virar a situação de forma absurdamente inverossímil, matar você e encerrar este filme, precisamos definir qual é o papel dessa mulher. Tolero qualquer coisa no meu filme, menos ponta solta! — Ele para e observa a protagonista, considerando as possibilidades. — E se ela fosse sua esposa? — pergunta ao vilão.
O sujeito coça a careca com a ponta da arma, ponderando.
— Hum... Nah, acho que seria mais orgânico ela ser uma coadjuvante, tipo sua irmã, amiga ou algo assim. — Ele estala os dedos, animado. — Já sei, ela pode ser sua friendzone!
— Tá difícil vocês entenderem que eu sou a protagonista, hein!
— Ou ela pode ser minha amiga lésbica — diz o interesse amoroso; discutiam como se a protagonista sequer estivesse presente. — Uma amiga com quem eu teria tido experiências homossexuais na faculdade, resultando em histórias que eu te contaria no começo do nosso relacionamento pra você me achar mais interessante e ousada.
— Ótima ideia, querida! Você bem que poderia ter tido uma amiga lésbica mais bonita, mas pra isso até que ela serve.
— Cara, já falei que sou hétero...
— Enfim, não importa! Preciso acabar logo com o protagonista e essa discussão não vai dar em nada. Por mim fica como ponta solta mesmo e que se dane! — diz o vilão, voltando a apontar a arma para o rapaz, prestes a puxar o gatilho.
Fora de quadro, surge o som de pneus derrapando. Que logo dá lugar ao som de metal colidindo e se deformando. E assim mais um carro entra em cena, desta vez em pleno processo de capotagem. O monte de metal retorcido avança rapidamente em direção ao casal, até que uma “quina” do carro bate no chão e o impulsiona para o alto, fazendo-o passar por cima dos dois em câmera lenta e indo de encontro ao vilão em alta velocidade. No susto, ele larga a arma, instantes antes de ser esmagado contra sua própria limusine. O resultado desse sanduíche automobilístico deveria ser uma explosão de carne, sangue e gordura, mas a cena é cortada antes para deixar a ideia apenas sugerida. Tudo pelo bem da classificação indicativa.
Voltamos então para a arma, que ainda está caindo, graças à maleabilidade do tempo que este tipo de mídia proporciona. Assim que atinge o chão, ela dispara sozinha e atinge a nossa pobre protagonista em cheio no coração, dando-lhe tempo apenas para sentir-se grata por estar deixando este filme. Ela cai morta sob os gritos de excitação do casal.
— Era disso que eu estava falando! Agora sim isso aqui está com cara de Hollywood!
— Verdade, já estava estranhando!
A porta do carro capotado se abre e o motorista sai dele, cambaleando. Ninguém parece notar que ele tem apenas um filete de sangue saindo do nariz, apesar de o carro parecer ter saído de um compressor de ferro-velho. Depois de sair do carro, ele se apruma e olha a cena à sua volta, analisando a situação.
— Você nos salvou! Muito obrigada! — diz a moça.
Passada a excitação inicial, o protagonista franze a testa, confuso, tentando entender:
— Mas peraí, qual é o seu papel no filme? Quem é você?
O motorista termina de conferir quem está vivo e quem está morto na cena e vira-se para o casal. Exibe um sorriso de satisfação e responde:
— Deus ex machina.

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