Fechou o chuveiro e abriu a porta do boxe. Foi recebida
pelo abraço gelado do ar, que logo deu lugar ao da toalha. Enquanto ela se
enxugava, uma sensação estranha. Olhou ao redor e levou algum tempo para
perceber seu reflexo no espelho acima da pia. O banheiro sem janelas sempre
deixava o espelho embaçado. Não foi o caso desta vez.
Seu reflexo não poderia estar mais nítido, parado
ao lado da porta. O estranhamento evoluiu para um incômodo ainda maior ao
perceber-se incapaz de sustentar o reflexo do próprio olhar, então deu dois
passos para o lado a fim de sair da frente do espelho. Curvou-se para enxugar
as pernas e um arrepio percorreu-lhe o corpo. Um movimento às suas costas. A
sensação de não estar sozinha.
Num ímpeto, levantou-se e virou para esquadrinhar o
banheiro. Nada. Olhou novamente para o espelho, e do ângulo em que estava podia
ver apenas o reflexo da porta. Desejando pela primeira vez que não morasse
sozinha, deteve seu olhar longamente no reflexo da maçaneta, apreensiva. Nada.
Ora, que besteira! Esperava que a maçaneta se
movesse sozinha? Abaixou-se para pegar as roupas sujas no chão e tentou pensar
em algo menos perturbador. Mal levantou e seu coração disparou.
Num canto do espelho, na moldura mais próxima a
ela, jurava ter visto o vulto de uma cabeça aparecer e desaparecer. Como se algo
dentro do espelho se inclinasse para dar uma rápida espiada no banheiro. Tão
rápida que mal acontecera e ela já questionava se não estava imaginando coisas.
Não era possível. Provavelmente estava sugestionada pelo incômodo momentâneo. A
apreensão transforma qualquer estalar de móvel em tiro de escopeta. Desejava
sair correndo do banheiro, mas se forçou a comportar-se como um ser racional.
Optou por voltar à frente do espelho para provar a si mesma que tudo estava bem
e continuou seu ritual pós-banho.
Olhou para baixo para calçar os chinelos que
costumava deixar embocados quase embaixo da pia. Quando levantou a cabeça, viu
que seu reflexo estava ainda completando o movimento que ela já havia
terminado. Como se o reflexo do espelho estivesse atrasado. Dessa vez teve
certeza de não ter imaginado. Novamente, sentiu uma presença atrás de si, muito
perto da nuca, e virou-se para olhar.
Mais uma vez, nada. Quando voltou-se para o espelho,
ele havia abandonado qualquer sutileza. Deparou-se com o reflexo das costas da
própria cabeça, que ainda não havia virado, numa extensão perturbadora do
atraso anterior. Em choque, ela permaneceu imóvel. Só conseguia fitar o reflexo
da própria nuca. Lentamente, a cabeça no espelho começou a se mexer, virando-se
para encarar a própria dona, que foi tomada pelo pavor.
No rosto deformado que a encarava da superfície
lisa do espelho, os olhos haviam sido tomados por buracos negros e esfumaçados
que vertiam pequenos filetes de sangue, num choro que contrastava
horripilantemente com a enorme boca sorridente. Os lábios iam de orelha a
orelha e exibiam centenas de grandes dentes pretos, muito finos e pontiagudos,
que se entrelaçavam perfeitamente e produziam um sorriso macabro que tomava
mais da metade do rosto. O sangue que escorria dos olhos avançava até os dentes
pretos e se perdia por entre eles, conferindo-lhes um brilho vivo escuro. A
pele, de um cinza com manchas esverdeadas, tinha aspecto podre e revelava veias
roxas de diferentes espessuras sob sua superfície.
Tentando apreender tudo que via no próprio reflexo,
ela soltou um gemido desforme de desespero e sua visão estremeceu. Sentia que
seu corpo estava prestes a ceder completamente a qualquer momento. Reuniu todas
as forças que tinha para se manter consciente e virou-se para a porta,
finalmente livre do transe que a paralisara até aquele momento, desesperada
para sair daquele lugar. Enquanto sua mão cruzava o ar em direção à maçaneta à
sua esquerda, viu de esguelha que seu reflexo deformado já havia alcançado a
própria porta virtual e girava a tranca. No mesmo momento, a tranca da porta
real também girou. Ela tentou destrancá-la, mas o trinco nem se mexia.
Alucinada e aos prantos, usava todas as suas forças contra a maçaneta. Puxava,
empurrava, batia. Em vão.
O pesadelo que se formara no espelho apenas a observava
com aquele sorriso bizarro e imóvel, parecendo divertido. A mulher, exausta,
abandonou seus esforços e encarou o espelho, trêmula. Ele abriu ainda mais seu
sorriso e começou a sacudir de leve os próprios ombros, numa gargalhada
contida. Lentamente, ele levantou a mão à altura da própria cabeça, o dedo
indicador em riste revelando a pele cinza e a unha amarela carcomida. Mantinha
o dedo parado no ar, como quem quisesse apenas exibi-lo para a mulher, que
estava totalmente atordoada. Sua gargalhada foi se intensificando, em franco
êxtase. Enjoada e tonta, a mulher acompanhou o dedo podre enquanto ele se
dirigiu vagarosamente na direção da parede próxima à porta. Ria cada vez mais
alto, agora com a boca medonha bem aberta, emitindo um som absurdo, inumano,
jamais antes ouvido por qualquer criatura deste mundo.
Ela tapava os ouvidos, tentando proteger-se do som
quase insuportável. Quando viu que o dedo parou perto do interruptor de luz,
ela foi dominada pelo mais absoluto terror. Ouviu-se o clique do botão e o banheiro
mergulhou em trevas conforme as gargalhadas grotescas se fundiam ao urro
abismal que explodiu da mulher.
***
Algum tempo depois, a porta do banheiro se abriu. O
que quer que tenha saído de dentro já não era mais ela.
Mas, rapaz... quase tive um treco aqui. Ainda bem que estou lendo pela manhã, porque se fosse de noite, acho que não dormiria mais não, nunca mais.
ResponderExcluirParabéns, Dani!