Como deve ser nascer cego e surdo? Não cego ou surdo, cego e surdo.
Se você nunca se perguntou isso, é possível que não perceba de imediato as implicações dessa condição tão extrema e única. E quanto mais se pensa nela, mais perturbadora se torna. Se já se perguntou, peço um pouco de paciência para que me permita situar aqueles que nunca o fizeram.
Como é a existência dessa pessoa? Qual o conceito dela a respeito do que é a vida, do que é o espaço que a cerca? Melhor ainda: ela tem um conceito a respeito dessas coisas? Tato, olfato e paladar. O que se pode compreender do mundo apenas com esses três sentidos? O que quer que seja, não poderá ser formulado através de palavras nem mesmo em pensamento. Aquela voz que vem na sua cabeça enquanto você pensa? Essa pessoa não tem; nunca aprendeu uma palavra. São apenas sentimentos, impossíveis de se organizar em qualquer forma que seja. Uma vida na escuridão e no silêncio.
Dos três sentidos restantes, suponho que o mais importante seja o tato. Talvez até seja possível estabelecer algum tipo de comunicação através dele. Coisas básicas, necessárias à sobrevivência, como hora de comer, ir ao banheiro e dormir. Nada muito além disso.
Não há, por exemplo, como tentar explicar que as outras pessoas possuem visão e audição. Como explicar para um cego o que é a visão sem poder conversar com ele? Como explicar para um surdo o que é a audição sem que ele possa te ver? Como explicar que aquela coisa que se mexe e o toca é outra pessoa, que tem sua própria vida?
Droga, não há nem como explicar o que é uma pessoa!
Não há, por exemplo, como tentar explicar que as outras pessoas possuem visão e audição. Como explicar para um cego o que é a visão sem poder conversar com ele? Como explicar para um surdo o que é a audição sem que ele possa te ver? Como explicar que aquela coisa que se mexe e o toca é outra pessoa, que tem sua própria vida?
Droga, não há nem como explicar o que é uma pessoa!
Com a real dimensão da situação compreendida, é provável que você esteja sentindo pena, assim como eu. A maioria das pessoas sentiria. Mas sabe quem não sente? A pessoa que está nessa condição. Ela não tem dó dela mesma, nem pensa algo do tipo: "Oh boy, como eu queria poder ver o que estou tocando agora..."
Para ela, não há nada de errado! Sua situação é natural, ela está acostumada com seu modo de vida e não tem consciência de suas limitações.
Pois agora, leitor que provavelmente já sabe onde quero chegar, eu pergunto: quem mais neste planeta acha que sua situação é natural, já está acostumado com seu modo de vida e não tem consciência das próprias limitações?
Todo o resto da humanidade. Sim, transponha a situação para nós, todos nós, e você chegará na analogia que eu queria. E se formos todos "cegos" e "surdos" para muitas coisas? E se o nosso planeta e o Universo são muito mais do que podemos ver, ouvir, tocar e sequer imaginar? E se houver, à nossa volta, um mundo completamente desconhecido e inatingível, assim como o nosso é para os cegos e surdos? Nossa vida, nossos problemas, nosso cotidiano, nossas necessidades. Nos concentramos tanto em tudo isso que acabamos esquecendo das nossas limitações.
(Dentro da mesma analogia, se somos todos cegos e surdos, o equivalente de um racista, machista, homofóbico ou qualquer tipo de intolerante não possuiria sequer o tato, tamanha a limitação do sujeito.)
Isso tudo não passa de um Mito da Caverna elevado ao quadrado, mas, se me permite a arrogância, acho a minha versão mais interessante (daí o "elevado ao quadrado") e, por mais estranho que possa parecer e sem trocadilhos, mais palpável, por ser baseada numa situação real e possível.
No caso dos cegos e surdos, sempre haverá alguém por perto consciente de que há mais, muito mais, do que aquela pessoa jamais será capaz de experimentar; alguém que toque essa pessoa e, com isso, talvez incite dúvidas e incertezas a respeito de sua existência.
Já nós, apesar de dotados de visão e audição, não temos assistência alguma (pelo menos não física, caso você acredite em Deus e tenha imediatamente torcido o nariz ao ler isso). Estamos abandonados à própria sorte, incapazes de experimentar algo que talvez exista e se encontre tão perto e que, contudo, permaneça inalcançável; incapazes até mesmo de obter a confirmação ou de que não há nada além do que conhecemos, ou de que há e realmente somos incapazes de alcançar.
Dizem que o cérebro humano é a máquina mais potente que se conhece, o que não significa que não haja tarefa impossível de ser realizada por ele.
Já nós, apesar de dotados de visão e audição, não temos assistência alguma (pelo menos não física, caso você acredite em Deus e tenha imediatamente torcido o nariz ao ler isso). Estamos abandonados à própria sorte, incapazes de experimentar algo que talvez exista e se encontre tão perto e que, contudo, permaneça inalcançável; incapazes até mesmo de obter a confirmação ou de que não há nada além do que conhecemos, ou de que há e realmente somos incapazes de alcançar.
Dizem que o cérebro humano é a máquina mais potente que se conhece, o que não significa que não haja tarefa impossível de ser realizada por ele.
Ao pensar nessa condição, fiquei imaginando maneiras de me comunicar por vibrações com uma pessoa assim, maneiras que um cego-surdo da caverna de Platãoˆ2 como eu pensaria em resolver tal situação rsrsrs... Pensei até em espetar o coitado, para ensinar através da dor. Enfim, sou apenas mais um cego-surdo e não consigo pensar fora da caverna mais... Triste fim... : )
ResponderExcluirPô, ótima ideia tentar contato através de vibrações! Numa pesquisa rápida enquanto escrevia o post, descobri que conseguem algum resultado com objetos frios e quentes e de tamanhos diferentes e com diferentes intensidades na força de contato (já se o contato será com espeto, é outra história hehehe). Mas as informações transmitidas são muito limitadas, coisas muito básicas =/
ExcluirDá uma olhadinha neste vídeo, Daniel. Para nós, de fato, é muito difícil até imaginar sermos provados de visão e audição. É um outro universo o da surdocegueira. Veja um pouco aqui: https://youtu.be/5Ya2_luDzes
ResponderExcluirCaramba, que vídeo excelente! Confesso que esperava que mostrassem alguém totalmente surdocego de nascença, afinal a analogia do texto só funciona nessa condição específica. Mas suponho que seja até melhor que não tenham achado alguém assim, rs.
ExcluirBonita demais a força de vontade desse povo que sempre acha uma maneira de se adaptar e conseguir levar uma vida relativamente completa. Valeu por compartilhar, seu sumido! ;)