domingo, 30 de setembro de 2012

O que mais há por aí?

Como deve ser nascer cego e surdo? Não cego ou surdo, cego e surdo.
Se você nunca se perguntou isso, é possível que não perceba de imediato as implicações dessa condição tão extrema e única. E quanto mais se pensa nela, mais perturbadora se torna. Se já se perguntou, peço um pouco de paciência para que me permita situar aqueles que nunca o fizeram.

Como é a existência dessa pessoa? Qual o conceito dela a respeito do que é a vida, do que é o espaço que a cerca? Melhor ainda: ela tem um conceito a respeito dessas coisas? Tato, olfato e paladar. O que se pode compreender do mundo apenas com esses três sentidos? O que quer que seja, não poderá ser formulado através de palavras nem mesmo em pensamento. Aquela voz que vem na sua cabeça enquanto você pensa? Essa pessoa não tem; nunca aprendeu uma palavra. São apenas sentimentos, impossíveis de se organizar em qualquer forma que seja. Uma vida na escuridão e no silêncio.

Dos três sentidos restantes, suponho que o mais importante seja o tato. Talvez até seja possível estabelecer algum tipo de comunicação através dele. Coisas básicas, necessárias à sobrevivência, como hora de comer, ir ao banheiro e dormir. Nada muito além disso.
Não há, por exemplo, como tentar explicar que as outras pessoas possuem visão e audição. Como explicar para um cego o que é a visão sem poder conversar com ele? Como explicar para um surdo o que é a audição sem que ele possa te ver? Como explicar que aquela coisa que se mexe e o toca é outra pessoa, que tem sua própria vida?
Droga, não há nem como explicar o que é uma pessoa!

Com a real dimensão da situação compreendida, é provável que você esteja sentindo pena, assim como eu. A maioria das pessoas sentiria. Mas sabe quem não sente? A pessoa que está nessa condição. Ela não tem dó dela mesma, nem pensa algo do tipo: "Oh boy, como eu queria poder ver o que estou tocando agora..."
Para ela, não há nada de errado! Sua situação é natural, ela está acostumada com seu modo de vida e não tem consciência de suas limitações.

Pois agora, leitor que provavelmente já sabe onde quero chegar, eu pergunto: quem mais neste planeta acha que sua situação é natural, já está acostumado com seu modo de vida e não tem consciência das próprias limitações?

Todo o resto da humanidade. Sim, transponha a situação para nós, todos nós, e você chegará na analogia que eu queria. E se formos todos "cegos" e "surdos" para muitas coisas? E se o nosso planeta e o Universo são muito mais do que podemos ver, ouvir, tocar e sequer imaginar? E se houver, à nossa volta, um mundo completamente desconhecido e inatingível, assim como o nosso é para os cegos e surdos? Nossa vida, nossos problemas, nosso cotidiano, nossas necessidades. Nos concentramos tanto em tudo isso que acabamos esquecendo das nossas limitações.

(Dentro da mesma analogia, se somos todos cegos e surdos, o equivalente de um racista, machista, homofóbico ou qualquer tipo de intolerante não possuiria sequer o tato, tamanha a limitação do sujeito.)

Isso tudo não passa de um Mito da Caverna elevado ao quadrado, mas, se me permite a arrogância, acho a minha versão mais interessante (daí o "elevado ao quadrado") e, por mais estranho que possa parecer e sem trocadilhos, mais palpável, por ser baseada numa situação real e possível.

No caso dos cegos e surdos, sempre haverá alguém por perto consciente de que há mais, muito mais, do que aquela pessoa jamais será capaz de experimentar; alguém que toque essa pessoa e, com isso, talvez incite dúvidas e incertezas a respeito de sua existência.
Já nós, apesar de dotados de visão e audição, não temos assistência alguma (pelo menos não física, caso você acredite em Deus e tenha imediatamente torcido o nariz ao ler isso). Estamos abandonados à própria sorte, incapazes de experimentar algo que talvez exista e se encontre tão perto e que, contudo, permaneça inalcançável; incapazes até mesmo de obter a confirmação ou de que não há nada além do que conhecemos, ou de que há e realmente somos incapazes de alcançar.

Dizem que o cérebro humano é a máquina mais potente que se conhece, o que não significa que não haja tarefa impossível de ser realizada por ele.

4 comentários:

  1. Ao pensar nessa condição, fiquei imaginando maneiras de me comunicar por vibrações com uma pessoa assim, maneiras que um cego-surdo da caverna de Platãoˆ2 como eu pensaria em resolver tal situação rsrsrs... Pensei até em espetar o coitado, para ensinar através da dor. Enfim, sou apenas mais um cego-surdo e não consigo pensar fora da caverna mais... Triste fim... : )

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pô, ótima ideia tentar contato através de vibrações! Numa pesquisa rápida enquanto escrevia o post, descobri que conseguem algum resultado com objetos frios e quentes e de tamanhos diferentes e com diferentes intensidades na força de contato (já se o contato será com espeto, é outra história hehehe). Mas as informações transmitidas são muito limitadas, coisas muito básicas =/

      Excluir
  2. Dá uma olhadinha neste vídeo, Daniel. Para nós, de fato, é muito difícil até imaginar sermos provados de visão e audição. É um outro universo o da surdocegueira. Veja um pouco aqui: https://youtu.be/5Ya2_luDzes

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Caramba, que vídeo excelente! Confesso que esperava que mostrassem alguém totalmente surdocego de nascença, afinal a analogia do texto só funciona nessa condição específica. Mas suponho que seja até melhor que não tenham achado alguém assim, rs.
      Bonita demais a força de vontade desse povo que sempre acha uma maneira de se adaptar e conseguir levar uma vida relativamente completa. Valeu por compartilhar, seu sumido! ;)

      Excluir